O fim da diplomacia (por Carlos Gaspar)

A diplomacia norte-americana deixou de existir quando o Presidente e o vice-presidente dos Estados Unidos decidiram mandar o Presidente da Ucrânia sair da Casa Branca, depois de Trump e Vance o terem confrontado em direto pelos meios de comunicação internacionais.

Os partidários da paz a todo o custo entendem que o Presidente ucraniano devia ter evitado responder e seguir o exemplo do primeiro-ministro britânico e do Presidente francês, que o precederam na Sala Oval para dar o exemplo do que significa a “vassalisation heureuse” nas relações com o novo Presidente norte-americano. Macron e Starmer, tal como Zelensky, temem tanto a Rússia como a convergência entre Trump e Putin, mas os primeiros, ao contrário do segundo, preferiram proteger os seus interesses em vez da honra.

O Presidente ucraniano decidiu não seguir os passos dos seus aliados europeus para não assinar um acordo suicida. Com efeito, Zelensky devia assinar com Trump um acordo para a exploração conjunta dos minerais críticos e dos recursos energéticos da Ucrânia com os Estados Unidos e aceitar um cessar-fogo com a Rússia, sem garantias de segurança norte-americanas contra uma repetição da invasão russa. Trump não está em condições de dar essas garantias sem pôr em causa um acordo com Putin, cujos termos foram apresentados pelo secretário da Defesa norte-americano na última reunião do Grupo de Contato para a Defesa da Ucrânia.

Esses termos, que definem a posição da Ucrânia depois de um cessar-fogo, estipulam que a Ucrânia não entra na Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e que não haverá nem tropas norte-americanas nem uma missão da NATO em território ucraniano para dissuadir a Rússia de completar a conquista da Ucrânia. A missão de paz, na fórmula norte-americana, deve incluir tropas europeias e não europeias, mas os Estados membros da NATO com tropas na Ucrânia não podem invocar a cláusula de defesa coletiva do Tratado de Washington se estas forem atacadas pela Rússia. As tropas não europeias ainda não estão identificadas, mas poderiam incluir forças da China e do Brasil, que tiveram a iniciativa de formar um Grupo de Amigos da Paz na Ucrânia.

Bem entendido, a linha de cessar-fogo separa as tropas ucranianas e russas que permanecem nas suas posições no fim das hostilidades e, nesse sentido, o acordo significa que a Ucrânia reconhece de facto a ocupação de um quinto do seu território pela Rússia e que os Estados Unidos e o “Ocidente Coletivo” reconhecem o direito de conquista das potências revisionistas como um princípio fundamental da nova ordem internacional, onde as fronteiras dos Estados soberanos voltam a deixar de ser invioláveis.

Pela sua parte, a Rússia declarou não aceitar a presença de forças de Estados-membros da NATO na missão de paz. Todavia, essa rejeição antecipa uma concessão da Rússia durante as conversações com os Estados Unidos, na esteira da sua aceitação da adesão da Ucrânia à União Europeia — a Hungria e a Eslováquia podem vetar a entrada do novo membro.

Os melhores espíritos concluíram que a confrontação na Sala Oval serve os interesses russos, mas Trump tem razão quando diz que Putin quer a paz: nos termos propostos pelos Estados Unidos, a paz garante à Rússia a vitória que não conseguiu obter no campo das armas. Para Moscovo, o acordo mediado por Washington é “Minsk 3”: depois de os acordos de cessar-fogo de Minsk em 2014 e em 2015, mediados por Berlim e por Paris, terem reconhecido na prática a anexação da Crimeia, os novos acordos reconhecem a anexação de Donetsk, Lugansk, Zaporijjia e Kherson. A anexação de Odessa fica adiada para uma próxima etapa.

Os suspeitos do costume desconfiam de que Trump e Vance provocaram o confronto com o seu convidado na Casa Branca, mas Trump tem razão quando diz que os Estados Unidos precisam da paz na Ucrânia e no Médio Oriente. A estratégia norte-americana, que se concentra em conter o desafio de Pequim ao primado internacional de Washington, precisa de ganhar tempo, tanto para restaurar a coesão política interna, como para consolidar as vantagens relativas dos Estados Unidos em domínios críticos da competição estratégica com o seu principal adversário.

Nesse quadro, a convergência entre os Estados Unidos e a Rússia é prioritária e a capitulação da Ucrânia deve poder abrir um novo período de “détente” nas relações entre os velhos inimigos da Guerra Fria. A ordem de trabalhos das reuniões de alto nível entre os representantes norte-americanos e russos, que estiveram em Istambul na semana passada, inclui o alargamento à China das conversações entre os Estados Unidos e a Rússia sobre a limitação das armas estratégicas nucleares, em que Moscovo passou a alinhar com a posição de Washington e deve estar preparado para pressionar Pequim; um programa conjunto de exploração dos recursos do Ártico, onde um condomínio entre os Estados Unidos e a Rússia pode definir o regime segurança de uma região estratégica; e o quadro geral de segurança na Europa, para assegurar a retirada de uma parte substancial das tropas norte-americanas.

O fim da diplomacia é garantir a estabilidade da sociedade internacional e não assinar acordos de paz a qualquer preço. A política de “appeasement” das potências revisionistas abre caminho à continuação do ciclo de guerras iniciado há três anos pela Rússia.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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