Alimento ultraprocessado deve ser regulado como cigarro, diz cientista

O cientista brasileiro Carlos Augusto Monteiro, de 76 anos, foi incluído em recente lista das 50 pessoas mais influentes de 2025, preparada pelo jornal americano The Washington Post. Para a publicação, esse seleto grupo de pessoas está “moldando nossa sociedade”.

Médico e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), onde fundou o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), Monteiro cunhou, em 2009, o conceito de alimentos ultraprocessados, amplamente discutido no mundo.

Não por acaso, ele ocupa o topo do ranking dos pesquisadores mais citados na literatura científica global em áreas como alimentação e nutrição, além de saúde pública. E, para o cientista, os ultraprocessados estão base da epidemia de doenças como a obesidade o diabetes.

Por isso, ele defende que esses produtos, que considera feitos por uma indústria altamente lucrativa, sejam regulados como os cigarros. Como e por quê? É o que ele explica a seguir, em entrevista ao Metrópoles.

Embora difundido no mundo, seu trabalho ainda é pouco conhecido no Brasil?

Sim, talvez seja mesmo. Em outros países, é provável que ele esteja sendo mais discutido. Nos Estados Unidos, isso está acontecendo com certeza. Há pouco tempo, Donald Trump criou uma comissão de altíssimo nível, coordenada pelo secretário de Saúde (Robert Kennedy Junior), que tem 100 dias para fazer um diagnóstico sobre a situação da saúde dos americanos e o papel da alimentação. Terminado esse prazo, o grupo terá mais 80 dias para definir uma estratégia para enfrentar o problema.

Qual é o problema exatamente?

Os americanos têm péssimos indicadores em relação à incidência de doenças crônicas, caso da obesidade do diabetes, e à mortalidade associada a essas doenças. Os números dos EUA são muito piores do que os de outros países de alta renda. Há uma suspeita muito forte de que um dos problemas por trás disso é o elevadíssimo consumo de alimentos ultraprocessados, inclusive na alimentação escolar.

Por que seu trabalho tem sido considerado tão importante?

O mérito do nosso grupo foi ter revisitado a relação entre alimentação e saúde. No passado, havia uma preocupação muito grande com a quantidade de sal, açúcar e gorduras não saudáveis na dieta. Mas isso acontecia sem que fosse identificado onde estavam esses ingredientes. Nós demonstramos que, no Brasil, nos Estados Unidos e em muitos outros países, o principal determinante do excesso desses ingredientes na alimentação era o elevado consumo de alimentos ultraprocessados. Esse foi o primeiro passo.

E o que veio a seguir?

Verificamos que esses ultraprocessados também deixam de oferecer às pessoas coisas boas que o alimento tem, mas que são destruídas no processamento. Estamos falando de fibras, proteínas, vitaminas, minerais.

Os ultraprocessados não têm essas coisas?

Em geral, não. E, quando têm, são fibras, proteínas, vitaminas e minerais adicionadas aos produtos e não parte integrante dos alimentos. Mas eles não funcionam da mesma maneira que atuam quando estão no alimento integral. Outra questão que levantamos é que os alimentos ultraprocessados são veículos do que chamamos de contaminantes.

Quais contaminantes?

Esses contaminantes incluem, por exemplo, moléculas como o bisfenol, liberadas pelos plásticos, porque esses alimentos ficam meses em embalagens desse tipo antes de as pessoas os consumirem. Existem outros contaminantes como a acrilamida, uma molécula que surge quando se submete o alimento a temperaturas muito altas. E, finalmente, há todos aditivos. Os ultraprocessados típicos não têm um ou dois aditivos. Eles têm cinco, dez, quinze aditivos diferentes.

O que são esses aditivos?

Alguns deles são considerados inócuos. Mas a ciência está mostrando que isso não é bem assim. Por exemplo, pensávamos que aditivos usados para manter unidas as substâncias utilizadas na manufatura de ultraprocessados e para dotar o produto de uma textura agradável eram eliminados com as fezes pelas pessoas. Hoje, sabemos que muitos desses emulsificantes são metabolizados pelas bactérias que temos no nosso intestino transformados em outras substâncias. E essas novas moléculas que se formam são, sim, absorvidas pelo organismo e vão criar um estado de inflamação crônica, que é a origem de várias doenças.

O senhor e seu grupo mostraram que a relação entre alimentação e saúde era mais ampla e complicada do que se imaginava. 

Sim. E ela ganhou essa complexidade com o advento dos alimentos ultraprocessados e a grande indústria que fabrica esses produtos é responsável por essa mudança e, portanto, por essas doenças.

Por quê?

Porque são as grandes indústrias, em sua maioria transnacionais, que produzem os alimentos ultraprocessados. Você não tem como fazê-los em casa, ou mesmo, em indústrias de pequeno ou médio porte. É preciso ter equipamentos sofisticados e acesso a esses aditivos todos

E sobre a conexão entre ultraprocessados e o desenvolvimento de doenças crônicas?

Claro que a relação entre o consumo de alimentos ultraprocessados e as doenças crônicas precisa ser demonstrada por estudos científicos. Hoje, existem centenas de estudos que, em seu conjunto, mostram que o aumento no consumo de ultraprocessados é o principal motor da pandemia de obesidade, diabetes e várias outras doenças crônicas de grande gravidade.

Como vocês começaram a estudar essa relação entre consumo de ultraprocessados e as doenças crônicas?

Primeiro, monitorando e identificando quais eram os grandes problemas de saúde no Brasil. O nosso grupo foi o primeiro a dizer que a desnutrição infantil era importante, mas o país está indo bem no combate a esse problema, com programas de transferência de renda e melhorias no saneamento, por exemplo. Mas a obesidade e o diabetes não, assim como as doenças que dependem dessas duas, a maioria delas ligadas a problemas com o coração, além de vários tipos de câncer. Nesse campo, a situação era bem ruim.

Vocês constataram que a obesidade e suas consequências estavam superando a desnutrição como problema.

Sim. Começamos a identificar que, ao lado desse aumento da obesidade muito intenso no Brasil, que teve início no fim dos anos 1980, havia mudanças na alimentação dos brasileiros.

Quais mudanças?

As pessoas compravam cada vez menos sal, açúcar e óleos, além de arroz, feijão, verduras e hortaliças. Essa redução era compensada pelo aumento do comércio de produtos prontos para o consumo, como doces, biscoitos, macarrão instantâneo, embutidos, tipo salsichas, salgadinhos de pacote, iogurtes e barras de cereais. Foi aí começamos a definir o conceito de alimentos ultraprocessados.

O que é um alimento ultraprocessado?

São formulações de substâncias que você tira dos alimentos, tipo amido, açúcar, óleos, proteínas, fibra, e mistura tudo com muitos aditivos. Isso porque essa mistura, em si, não é palatável. Então, para torná-la, digamos, comestível você precisa acrescentar corantes, aromatizantes e emulsificantes. Comer o milho é uma coisa, mas o salgadinho de milho é bem diferente. Primeiro, porque de milho ele não tem nada. É amido aromatizado e colorido artificialmente.

Vocês também definiram uma nova classificação de alimentos.

Nós a chamamos de Nova (veja detalhes dessa classificação neste link). Nela, os alimentos são classificados em quatro categorias, de acordo com o nível e tipo de processamento e não mais por apresentarem mais ou menos proteína, carboidratos ou gordura.

A indústria contesta com frequência a definição de ultraprocessados.

A indústria fala que, para nós, qualquer produto processado é ruim para a saúde. Óbvio que não. O Grupo 2 dos alimentos classificados na Nova é formado por ingredientes culinários, intensamente processados. Mas as pessoas não os consomem por si. Eles são usados no preparo dos alimentos. Estamos falando de óleos para cozinhar, manteiga, sal, açúcar. E essa foi outra diferença que trouxemos. Nas classificações anteriores, esses produtos eram os demônios, os vilões. Não são, porque a gente só consegue consumir os alimentos do Grupo 1, que são os minimamente processados, se utilizar esses ingredientes culinários.

Pode citar alguns exemplos de alimentos ultraprocessados?

Há de tudo. Desde refrigerantes, que consistem em água, açúcar, corante e aromatizante, a bebidas lácteas, feitas com soro de leite, amido, açúcar, emulsificantes, aromatizantes e corantes. Existem ainda os sucos de caixinha feitos de concentrados de frutas diluídos em água e adoçados e aromatizados, barras de açúcar denominadas barras de cereal, macarrão instantâneo, sopas desidratadas, etc., etc.

Mas há produtos que podem estar na lista tanto de ultraprocessados como de minimamente processados.

Para cada alimento processado ou minimamente processado, a indústria oferece uma versão ultraprocessada. Então, é complicado. O pão, por exemplo. Você vai a uma padaria, compra um pãozinho, ele é processado. Ok. E o que a indústria faz? A versão ultraprocessada, que é o pão de forma. Qual é a diferença? Uma delas é a duração. Guardado na geladeira, o pão de forma praticamente não estraga. Você pega um pão de hambúrguer e ele dura meses na geladeira. Mas para ele ter essa característica você vai usar emulsificantes (aditivos alimentares que melhoram a aparência, sabor, textura e validade dos produtos). Além disso, com esse pão, a pessoa também vai comer um hambúrguer, uma salsicha, vai colocar maionese que também é ultraprocessada. Então, tudo isso forma um padrão de alimentação.

Qual outro exemplo desse tipo?

O chocolate. Você tem o processado, que custa caro e tem cacau. Existe também o ultraprocessado, feito, basicamente, com óleo de palma, um monte de açúcar, aromatizante e corante. Tudo para simular o gosto do chocolate. Com os sorvetes acontece a mesma coisa. Existem os processados, que também são caros, ou os baratos, de óleo de palma, açúcar, aromatizante e corante. O ultraprocessado é o tipo de alimento que lembra alguma coisa de que as pessoas gostam, como chocolate, sorvete, suco de fruta, mas não é isso. E por que a indústria faz isso? Porque ela tem lucro.

Pode explicar melhor essa questão do lucro da indústria?

Tem lucro porque os ingredientes usados nos ultraprocessados são muito baratos. Então, na verdade, a produção desses alimentos constitui um modelo de negócios. Esse é o problema. Trata-se de um ramo extremamente lucrativo. E quando você tem, em qualquer área da economia, um produto que é muito mais rentável, ele vai derrubar outros. Isso é inevitável. A menos que haja regulação.

Como deveria ser essa regulação?

Tratar a mercadoria ultraprocessada, o alimento ultraprocessado, como se trata o cigarro, o tabaco. A produção de cigarro também é um negócio extremamente lucrativo. Folhas de uma planta de alto rendimento são processadas com uma série de aditivos para gerar um produto viciante que pode ser vendido com grande lucro por seu produtor. O ultraprocessado é a mesma coisa. Você parte de um ingrediente muito barato, como açúcar, óleo de palma, proteína da soja, acrescenta uma miríade de aditivos e cria um produto que vai disputar o mercado com o alimento tradicional. E, se não houver regulação, o ultraprocessado vai ganhar. É isso o que está acontecendo por toda parte

A regulação seria usada para conter o consumo?

Sim, porque a indústria de ultraprocessados segue ganhando mercado. Como reduzimos o consumo do cigarro no Brasil? Regulando. Hoje, temos menos de 10% de fumantes. Já tivemos 70%. Essa mudança passou por fatores como o aumento do preço do cigarro, restrições à publicidade e até a proibição do consumo em locais públicos.

O senhor acha que o mesmo deveria ser feito com os ultraprocessados?

Essa é a dificuldade, porque a indústria do tabaco conseguiu adiar por 50 anos os programas de controle. Os produtores de ultraprocessados têm a mesma expectativa.

Qual é a estratégia dessa indústria?

Eles sabem que um dia, mais cedo ou mais tarde, esse modelo de negócios vai se complicar muito. Mas, enquanto isso não acontece, eles ganham dinheiro. A estratégia, portanto, é adiar a regulação. Para isso, eles fazem muitas coisas.

Que coisas?

Criam, por exemplo, o que chamamos de mercadores da dúvida. Uma estratégia dessa indústria é desqualificar a pesquisa sobre ultraprocessados, dizer que tudo isso é bobagem, pagar pessoas para afirmarem isso. Outra coisa é financiar governos e agências regulatórias.

Quais são as questões que deveriam ser reguladas com prioridade?

A publicidade, por exemplo. Quando a pessoa compra alguma coisa, em grande parte, faz isso por causa do preço. Mas também é pelo desejo de consumir aquele produto. E a publicidade tem um poder fantástico nisso, principalmente, em relação às crianças e aos adolescentes. E eles são os consumidores de amanhã. Em relação a isso, o Brasil não fez nada ainda.

De novo, essa é uma situação parecida com a do cigarro?

É igual. Porque se você tivesse imposto no cigarro, mas continuasse glamourizando o ato de fumar, o imposto não funcionaria, muitas pessoas continuariam fumando. E há outra analogia com o cigarro que é o poder viciante. Existem vários estudos sobre isso.

O que é esse poder viciante?

Muitos ultraprocessados são desenhados para viciar. Existem bancadas de análise sensorial nas quais esses produtos são criados, combinando aditivos e ingredientes de uma forma que maximize o prazer das pessoas. Ou seja, eles são desenhados para serem consumidos compulsivamente e em excesso. E essa é outra analogia com o cigarro, porque combinando ingredientes e aditivos, você consegue tornar algumas pessoas dependentes desses produtos. E isso tem consequências terríveis.

Como esse vício se estabelece?

Quando você combina gordura e açúcar em uma proporção determinada, por exemplo, você maximiza o prazer. Quando combina carboidrato e sal, também. Outra coisa prazerosa para as pessoas é a textura, particularmente a textura crocante, que faz a pessoa comer mais. Outra é a cor. Estamos falando de tecnologias sofisticadíssimas de criação de produtos. Isso tudo vai atuando no cérebro e disparando sensores que vão dizer para você: isso é muito bom, você precisa mais disso.

As pesquisas também associam o consumo de ultraprocessados com doenças. Pode citar alguns exemplos?

A maioria não é de trabalhos brasileiros. Estamos começando a fazer isso agora. O padrão ouro para essas análises é seguir milhares de pessoas por muito tempo, mais de dez anos, por exemplo. Mas existe um estudo que pode ser definido como seminal, publicado no British Medical Journal por um grande grupo de outros pesquisadores. Ele lista 32 doenças associadas a ultraprocessados, envolvendo problemas no coração, mentais, respiratórios, gastrointestinais, depressão, Parkinson, demência. E isso é assustador, porque você começa a ver que o problema é maior do que pensávamos quando começamos a estudar o assunto.

E o que as pessoas podem fazer para evitar esse problema?

A mensagem, em resumo, é escolher a comida de verdade. Não substituí-la pela comida falsa, pelos simulacros de alimento. Temos de ter um padrão de alimentação baseado em preparações culinárias feitas na hora, numa cozinha normal e não numa fábrica, com coisas criadas por engenheiros. Felizmente, no Brasil isso ainda é possível.

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