Um baita susto, um medo de morrer e alguns encontros muito gentis

Em menos de meia hora de Rio de Janeiro, um baita susto. “Pronto, lá se foi meu único cartão de crédito e débito”. Corri de volta ao caixa automático do aeroporto e o incrível tinha acontecido: meu dinheiro de plástico estava lá, são e salvo. Uma santa alma o havia encontrado dentro da gavetinha de luz vermelha e o deixara ao lado.

Assim começou minha estada no Rio de Janeiro para onde vim no encalço de Lucio Costa. É aqui que estão as pegadas do criador de Brasília, nos lugares onde passou a infância desde muito bebezinho até os 8 anos. E depois, dos quase 15 anos até a sua morte, aos 96. O filho de seu Ribeiro e dona Alina, de um baiano e de uma amazonense, foi um carioca meio europeu, mas muito brasileiro – “um architecto de sentimento nacional”, como escreveu um jornal do Rio de Janeiro no final dos anos 1920.

Em menos de 24 horas de Rio de Janeiro, vivi a vida urbana como ela é. Quanta saudade eu estava de uma cidade misturada, de muita gente na rua, de camadas de séculos de arquitetura e urbanismo nas avenidas, nas ruas, nas vilas, nos edifícios, nas pracinhas, na fachada das casas, nos letreiros das lojas – no Rio antigo.

O segurança do aeroporto me ensina calmamente a pegar o transporte mais barato e prático para chegar ao Leme. Chego ao Terminal Gentileza, nome em homenagem ao Profeta Gentileza, personagem inesquecível das ruas do Rio. A cobradora que pede meu cartão de embarque sorri pra mim; o senhorzinho pede licença para se sentar ao meu lado no VLT. Vida urbana intensa e cordial, tudo na escala do corpo humano.

Já instalada, anoitece e resolvo, temerosa, descer para procurar alguma comida. No elevador de porta de ferro sanfonada, imagino que vou correr enorme risco de furto, de roubo, de morte. Chego à rua, é noite mas é dia. Intenso movimento de gente, carros e luzes. A cidade me faz companhia e me sinto inesperadamente segura. O Rio de Janeiro me manda viver – vai, mulher, ser gauche na vida.

Na volta da incrível aventura noturna de comer uma deliciosa sopinha de R$ 18,60, com pão francês fresquinho, me sinto uma capiau na cidade grande. No apartamento de aluguel por temporada, conheço os outros dois hóspedes: mãe e filho vindos de Brasília. Yuri Correa é aluno do sexto semestre na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília. Baita coincidência.

Brasiliense do Recanto das Emas, filho de uma nordestina com um candango, Yuri veio mostrar o Rio de Janeiro para a mãe, dona Francisca, cearense de Tianguá. Ela veio para a nova capital em busca de oportunidade, como quase todos nós. Casou-se com seu João e os dois conseguiram ganhar um lote do governo Roriz, naqueles tempos alucinantes de migração para Brasília. O marido morreu aos 43 anos e deixou mulher e filho, um cuidando do outro.

Ao contrário do que se pode imaginar, a vontade de Yuri de fazer Arquitetura não nasceu da delicada imponência dos palácios de Oscar Niemeyer ou da harmoniosa configuração urbana das superquadras de Lucio Costa. Nasceu dos mutirões dos candangos que construíam suas próprias casas nas cidades-satélites.

O candanguinho Yuri via o pai e a mãe erguerem a morada de tijolo no Recanto das Emas, em meados dos anos 1990. Ficava extasiado com as paredes subindo e com a magia da argamassa: o pai misturava areia, cal, cimento e água, e a mãe ia assentando aquela massa grudenta que, de repente, endurecia. Era mágico demais aos olhos de uma criança. Yuri olhava ao redor, via os vizinhos fazendo a mesma coisa e parecia que ali estava surgindo o mundo.

Algum tempo depois, já na adolescência, Yuri foi conhecer a Catedral de Brasília com a turma da escola. Desceu a rampa escura da entrada da igreja e foi tomado pela claridade sublime da nave, dos vitrais e da onipresença dos anjos de bronze pendurados no ar.

De dois instantes reveladores, um no Recanto das Emas, cidade-satélite de Brasília, e outro no Plano Piloto, nascia em Yuri, silenciosa e vivamente, o desejo de ser arquiteto. Seis semestres depois, escolheu para as férias escolares um passeio de uma semana na cidade onde os cariocas Lucio Costa e Oscar Niemeyer viveram toda a vida. Cada um de nós, os bambambãs da arquitetura moderna brasileira, o jovem estudante brasiliense e eu partilhamos do mesmo sentimento de querência pelo Brasil, um sentimento nacional.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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