Saiba que aconteceu com a família imperial após a proclamação da República

 

“Era novembro e não chovia. Mas os dramas que mudam vidas não escolhem o tempo. A Princesa Isabel viveu um deles. Foi no que se deu ‘a maior infelicidade da nossa vida’, registrou”. Assim, a historiadora e escritora Mary del Priore começa o fascinante livro ‘Segredos de Uma Família Imperial’ (ed. Planeta), que descreve a história da proclamação da República brasileira, em novembro de 1889, pela ótica dos vencidos: a família imperial e os monarquistas.

Afinal, o que aconteceu com o imperador Dom Pedro II e sua família logo após o golpe militar liderado por Deodoro da Fonseca no alvorecer da República? Como eles receberam a notícia de que, a partir daquele momento, não governavam mais a nação e tinham que deixar o país? Houve resistência por parte dos monarquistas para uma possível restauração do trono?

O livro responde a essas questões e aborda recortes históricos pouco conhecidos e explorados da nossa história, já que o lado dos vencidos, quase sempre, é ofuscado pelos louros do lado vencedor.

Na manhã de 15 de novembro de 1889, o Paço Imperial, no Rio de Janeiro, se preparava para mais um dia como outro qualquer, sem que os membros da realeza, com exceção do conde d’Eu, desconfiassem dos acontecimentos que estavam por vir.

“O imperador e a princesa certamente foram pegos de surpresa”, diz Mary, que também explica os fatores que levaram à queda do Império — insatisfações da elite agrária após a abolição da escravatura e dos militares pós-Guerra do Paraguai, entre outros, além da desorganização dos próprios grupos monarquistas em elaborar um plano nacional organizado de resistência contra os republicanos.

Havia também outros motivos, mais íntimos. Apesar do desgosto sofrido com a queda do regime imperial, Dom Pedro II, por outro lado, não achava de todo o mal a vida que estava levando na Europa. Mesmo com o aperto financeiro — já que não aceitou a indenização financeira oferecida pelos republicanos —, o monarca, livre das amarras burocráticas do poder, tinha tempo livre suficiente para fazer aquilo que mais gostava: ler, visitar bibliotecas e participar ativamente das comunidades científicas europeias, onde era muito respeitado. A seguir, confira a entrevista de Mary del Priore à Aventuras na História:

– Seu novo livro aborda o lado vencido no processo da Proclamação da República. Ou seja, o Império. Por que esse tema não é tão estudado, já que pouco se sabe do destino da família imperial?

Mary: Os modismos metodológicos têm grande influência na produção historiográfica acadêmica. Ou seja, milhares de teses e pesquisas respondem a temas externos ao interesse do grande público. A “História vista de baixo” foi um deles. Logo, a vida das elites se tornou assunto de última importância, sendo até considerado inadequado frente à herança de desigualdade e das escravidões em nossa história. Por isso, só se estudam excepcionalmente os barões do Império e, junto com eles, o destino da família imperial. Além disso, há forte preconceito em relação aos grupos monarquistas. Joga-se fora o bebê com a água da bacia, pois há excelentes pesquisadores que estudam a monarquia sem serem monarquistas ou monarquistas que estudam a monarquia sem serem reacionários. O fato de se colocar tudo em “caixinhas” ideológicas atrasa o conhecimento de personagens e partes da História do Brasil.

– A senhora diz que os acontecimentos de 15 de novembro de 1889 pegaram a família imperial de surpresa. Eles não tinham noção ou informações do golpe republicano em curso?

Mary: O imperador e a princesa certamente foram pegos de surpresa. Mas não o consorte, conde d´Eu. Tendo servido nos exércitos espanhóis às vésperas da República na Espanha, ele soube reconhecer, antes de qualquer um, o movimento republicano no seu nascedouro. Sua participação na Guerra do Paraguai e o convívio com os militares também o deixaram alerta sobre o ressentimento das tropas. O descaso do imperador com a luta de brasileiros em condições horrorosas — falta de alimentos, armas, roupas — e a falta de consideração com o Exército só alimentaram o sentimento de abandono. Há tempos circulavam rumores de insatisfação e cito uma carta do conde d’Eu à condessa de Barral em que ele os reconhece. Mas argumenta: não havia nada a fazer. O imperador lhe parecia impenetrável. Não ouvia ninguém e estava alheio à opinião pública.

– A princesa Isabel e o imperador se sentiam fortes politicamente, em especial por conta da popularidade pós-abolição. Na sua avaliação, qual foi o erro estratégico e político da família imperial que levaram à queda da monarquia?

Mary: Foi tudo um processo. Mas é bom lembrar que o final do século 19 assistiu ao surgimento de grupos com ideias liberais que propunham a transformação da sociedade. Eram anticlericais, livres-pensadores, abolicionistas, anarquistas, socialistas, positivistas, espíritas, maçons e protestantes. Cada qual se movendo num espaço circunscrito. Tinham um objetivo comum: a busca de um Estado laico e da República. Queria-se saúde, saneamento, educação. Queria-se também a modernidade europeizada e “civilizada” que se via do outro lado do Atlântico: motores, métodos científicos, voto, consumo. A perspectiva de um Terceiro Reinado com a princesa Isabel, como comprovado por vários historiadores, era coisa de um pequeno grupo. Suas regências passaram longe de corresponder às aspirações de um tempo que mudava em velocidade até então desconhecida.

– Havia espaço para a resistência contra a conspiração republicana e, assim, a preservação do Império?

Mary: Sim. Houve resistência e demonstro isso no livro. Mas foram episódios locais e de pouca repercussão. A correspondência entre Isabel e os monarquistas da capital ensejou o sonho da restauração com o príncipe Dom Luís (um dos filhos da princesa e do conde d’Eu). Mas quando vemos a imediata adesão dos antigos apoiadores do império à República, e quando Gilberto Freyre os entrevistou em Ordem e Progresso, vê-se que o apoio era localizado e que rapidamente se dividiu em projetos diversos. Não houve um movimento que integrasse exigências paulistas, cariocas, mineiras, maranhenses etc. Havia, sim, um grande saudosismo do imperador. A falta de dinheiro para movimentar uma reação foi outro empecilho. A família imperial saiu sem um tostão do Brasil e enfrentou dificuldades financeiras até o final. Nunca contou com dinheiro da nação ou com os cofres públicos. Ela foi exemplar se a comparamos com os exemplos de corrupção que a República nos deu e dá.

– Após o exílio, havia esperança e até movimento tático e político pelo retorno de Dom Pedro II ao trono? Por que isso não deu certo?

Mary: Além das razões acima, os monarquistas de raiz sempre estiveram divididos sobre o destino da Coroa. Os cariocas queriam o legítimo herdeiro, D. Pedro de Alcântara, obrigado a renunciar pelos pais. Ele teve a coragem de trocar o amor de sua vida pelo trono. Já São Paulo, queria Dom Luís, que se apresentou como candidato trazendo junto um programa de governo. Até hoje não há consenso e, como já não havia antes, o partido se enfraqueceu. Lembro também que a República Velha nasceu em guerras internas que mergulharam o país em sangue: Canudos, Revolta da Armada, Contestado, além da crise financeira provocada pelo Encilhamento. Enfim, os tempos não deixaram o projeto monarquista respirar.

– No livro, a senhora foca muito na princesa Isabel e sua família e menos no imperador Pedro II. Por quê?

Mary: Porque ele desaparece do livro no capítulo quinto. Ele morreu em Paris, num novembro muito frio. Vivia modestamente num hotel. Encontrava-se só, quando fechou os olhos. Repetiu-se a cena da morte de dona Teresa Cristina: ela morreu chamando por ele, que se encontrava em visita a uma biblioteca. Ele morreu chamando pela filha ausente. No Rio de Janeiro, o comércio cerrou as portas, as bandeiras desceram a meio-pau e o ministério temeu uma reação dos monarquistas. Eles esperavam um Manifesto da Princesa, que não veio. O entusiasmo de muitos deles foi embora com a morte de Dom Pedro II. O livro acompanha a vida do restante da família, sobretudo de nossos três príncipes: Pedro, Luís e Antônio, que tiveram destino e personalidade muito diversos. Foi neles que quis focar, pois são verdadeiros desconhecidos de nossa gente. Cada qual com seu temperamento, ambições, sonhos, alegrias e frustrações revelam que a história da família imperial teve continuidade depois do golpe republicano. Os jovens amadureceram entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial e suas trajetórias revelaram as rachaduras na família, não só provocadas pelo amargo exílio, mas pelas próprias mudanças da sociedade europeia. Uma sociedade que se laicizou, que conheceu movimentos populares e a emergência do comunismo, que viu a aristocracia se aburguesar e apoiar o divórcio, que mergulhou nos “anos loucos” com festas, cocaína e cassinos. Enfim, uma sociedade que vai apontar novos rumos para os três rapazes. Como eles confrontaram as mudanças, com a educação conservadora que tiveram, é o cerne do livro.

– A senhora cita muitas peculiaridades da família imperial, como o fato de a princesa fazer sorvete. Qual a importância de mostrar esse lado cotidiano dos governantes para o leitor?

Mary: Penso que o cotidiano e a privacidade nos permitem ver a história sobre outros ângulos. Por exemplo, ver aquilo que é próprio de grupos ou enxergar singularidades capazes de reconstituir suas identidades. E só podemos fazê-lo através da documentação, sobretudo da correspondência, memórias, autobiografias. Essa documentação nos permite ascender ao seu ambiente, às suas relações de parentesco, às suas sociabilidades, às suas representações, à sua maneira de ver o mundo e mais importante: “o seu vivido histórico”. Extraímos, assim, de suas próprias vozes, as experiências que tiveram. É como se os ouvíssemos falar. Em síntese, a chamada L’Alltagsgeschichte (abordagem do “cotidiano” que se submeteu a infinitos debates com centenas de interpretações) tem por ambição evidenciar as relações entre as grandes mudanças históricas e a experiência cotidiana de pessoas comuns. Sem considerá-las uma massa inerte, ela se concentra em saber como as pessoas agem diariamente e como tal ação é embebida em crenças e representações mentais.

– A senhora faz parte do seleto grupo de estudiosos e escritores que, ao longo dos anos, se tornaram best-sellers com livros sobre História do Brasil, tanto por conta da linguagem acessível, sem perder a profundidade, quanto pela seleção de temas relevantes ao leitor. Qual a importância de tornar o estudo da nossa história mais palatável e interessante a todos, em especial o cidadão comum?

Mary: Trata-se de um compromisso para valorizar a disciplina. Digo isso, pois estamos abandonando esse tesouro apaixonante que é a História do Brasil, abandonando-o à preguiça de leitores e ao medo de editores que receiam perder dinheiro; abandonando-o às fake news. As academias insistem em só fazer trabalhos para elas mesmas, ignorando que, sem esforço de comunicação, nossa gente vai esquecer que tem um passado. Eu quero nossa história viva. Por isso, faça-a com paixão, poesia, humor, enfim, com tudo que convide as pessoas a quererem nossa História viva também.

Fonte: Aventuras na História

 

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