Vem dançar com Mercedes Baptista

Estamos em 1940 e os teatros municipais cultivavam um desprezo ao popular. O que é da rua, que fique por lá. Conspiravam um temor de ser contaminados pela alegria, força e improviso. A escolha era reverenciar os europeus – e copiar humildemente suas obras e linguagens. Às vezes negros subiam ao palco – uma exceção àquilo chamado de folclore. Até que surgiu Mercedes Baptista.

Com ela, o Teatro Municipal do Rio de Janeiro abriu as cortinas para o lundu, o frevo, a ciranda, o maracatu, o xaxado, o coco, o baião, as danças do candomblé. Cerca de 30 anos após a Semana Modernista de 1922, as manifestações culturais brasileiras encontravam elementos estrangeiros – no caso, as pesquisas da coreógrafa e antropóloga Katherine Dunham, a matriarca da dança negra norte-americana – para forjar o inédito, o diálogo entre as técnicas da arte e o balanço ancestral, que seduz a burguesia como novidade. O Ballet Folclórico Mercedes Baptista ganhou o mundo.

A trajetória de Baptista é produto das forças políticas de seu tempo. A partir dos anos 1930 o Estado Novo de Vargas promoveu a mestiçagem e as ideias modernistas como fundamento de nossa identidade nacional. Por um lado, estimulava “o embranquecimento e apagamento de das origens africanas”, por outro, estabelecia um discurso comum para que todos os brasileiros pudessem juntos construir o “país do futuro”.

Esse ideário dançava alegremente no salão, quando Mercedes Baptista foi de encontro a um corpo racialmente conscientemente. Era o Teatro Experimental do Negro, fundado em 1944 pelo ator, dramaturgo, artista plástico, poeta e político Abdias do Nascimento. O grupo trouxe novos olhares e críticas à discussão sobre a negritude no Brasil, que se contrapunha às caricaturas do imaginário social. Mercedes Baptista trilha seu próprio caminho, iniciado por Eras Volúsia, Luz del Fuego e Felicitas Barreto, cerca de uma década antes.

Chegamos até aqui e ainda não citei minha fonte de informação. É o artigo “Ballet Folclórico Mercedes Baptista: entre brasilidade e negritude no Rio de Janeiro das décadas de 1950 e 1960”, escrito por Erika Villeroy e publicado em 2021 na Revista Arte e Ensaios da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). No texto, a autora entrelaça a biografia da bailarina com a análise do contexto histórico.

Foi a primeira bailarina negra a ser aprovada no concurso para o corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Entretanto, apesar da competência na dança europeia, tinha papel secundário nas apresentações. Foi nesse momento em que ela se aproxima de Haroldo Costa e seu Teatro Folclórico Brasileiro, e do Teatro Experimental do Negro – em que conhece as atrizes Ruth de Souza, Arinda Serafim, Marina Gonçalves. Ela abandona a proposta de identidade das elites e incorpora um posicionamento e uma estética de uma artista negra colada em seu tempo

Por intermédio de Abdias do Nascimento, em 1950 ela viajou aos EUA para estagiar com Katherine Dunham (1906-2006). Dunham estabeleceu as bases para a sistematização de danças afrodiaspóricas que influenciaram  as estéticas negras da época. Com mil ideias no corpo e de volta ao Brasil, em 1952, fundou a Academia de Danças Mercedes Baptista, na Praça Tiradentes, no Centro do Rio.

Ensino, sucesso e Carnaval

Ballet Folclórico Mercedes Baptista estreou em 1953 e teve repercussão nacional com apresentações em teatros populares, cassinos, cinema e posteriormente na televisão. No exterior, a companhia realizou turnês na América Latina e Europa.

Mesmo com um olhar crítico e a bagagem do TEN, “o trabalho de Mercedes Baptista passa por uma certa ideia de folclore, termo aqui entendido como uma ficção que justifica e dá contornos ao que seria a brasilidade projetada pelo Estado Novo. É essa condição que vai, de certa forma, legitimá-la como ouro nacional aqui e no exterior”, escreve a autora.

Nos anos setenta, Mercedes Baptista dedicou-se especialmente ao ensino. No Brasil, tornou-se professora da Escola de Dança do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, ministrando a disciplina “Dança Afro-Brasileira”. Nos EUA, ministrou cursos no Connecticut College, no Harlem Dance Theather e no Clark Center de Nova York. Ao mesmo tempo, seu sucesso como coreógrafa a tornava cada vez mais requisitada para o cinema e a televisão.

Entre elogios e críticas, traz elementos de seu trabalho para as escolas de samba. Em 1963, Mercedes coreografa a Comissão de Frente da Acadêmicos do Salgueiro, com samba-enredo “Xica da Silva”. A escola venceu o Carnaval. Em 1979,  participa da criação da Associação Profissional dos Profissionais da Dança, que se tornaria o Sindicato dos Profissionais da Dança do Município do Rio de Janeiro.

Em 1980 o Ballet Folclórico Mercedes Baptista foi retomado e um novo grupo se formou. Com grande sucesso, foram apresentados os espetáculos “Orungá e Iemanjá”, “Visita de Oxalá ao Rei Xangô” e “Mondongô”. Dois anos depois, a bailarina e professora se aposentou pelo Teatro Municipal. Faleceu no Rio de Janeiro, em agosto de 2014, aos 93 anos de idade.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.