Basta uma pessoa justa para salvar o mundo do abismo (Por Juan Arias)

Abro o computador para escrever o artigo mais difícil do meu meio século de jornalismo. Escrevo enquanto minha esposa brasileira, Roseana Murray, que dedicou toda a sua vida com suas publicações e seus encontros com escolas públicas das periferias pobres do Brasil aos problemas da educação, está entre a vida e a morte com seu corpo destruído por três cães ferozes no meio da rua.

Eu não ia escrever hoje. Achei que não conseguiria. Mas pensando em sua dedicação aos outros, mesmo quando ela estava engatinhando para a escola ferida, decidi fazer isso. Sei que estou cometendo um pecado jornalístico, mas ter passado o Rubicão dos 90 anos me liberta de todos os esquemas.

Neste momento lembro-me que há semanas, perante a avalanche de notícias dramáticas de violência que inundam as redes e os meios de comunicação globais, escrevi aqui uma coluna perguntando-me se no mundo em que soam os sinos sombrios de novos medos, de um novo mundo possível guerra, não há notícias positivas que resgatem a nossa esperança. A coluna foi traduzida e publicada também aqui no Brasil, símbolo da sede de um sopro de oxigênio de esperança que o mundo precisa.

A dor e o medo que me inundam neste momento pela possível perda da minha esposa estão sendo aliviados por uma onda inesperada de solidariedade, mesmo de pessoas que não conheço. Elas me abraçam e choram comigo. Elas me oferecem toda a sua ajuda. No meio desta onda de solidariedade, sinto-me particularmente confortado e comovido pela dos meus colegas do jornal, muitos dos quais nem conheço pessoalmente. Não nos comunicamos com outras pessoas há mais de 30 anos. A minha experiência e a minha idade fazem-me discernir entre a falsa e a verdadeira solidariedade. A deles é autêntica.

Por que essa onda de carinho dos meus colegas me choca? Porque estou cansado de ouvir e ler que nos campos de trabalho a erva da inveja e até das traições costuma crescer sem espaço para amizades e sentimentos. São campos áridos de solidariedade. Hoje, posso negar que seja assim.

Enquanto escrevo, lembro-me da história bíblica, da sabedoria antiga, onde se diz que uma pessoa justa é suficiente para salvar o mundo do caos. Noé estava nos tempos de destruição do dilúvio. E hoje estou convencido de que o mundo, com seus traumas e crueldades, que fazem parte de sua existência, continuará de pé, será salvo porque nele não há apenas um justo. Eles são legiões. A maioria deles anônimos, os mais abandonados ao seu destino, que com a sua força e coragem interiores sustentam as colunas que nenhum novo Sansão poderá derrubar.

Sempre fui um amante e estudioso das palavras que criaram o universo. Sei que existem os cruéis, os da morte, mas também os salvadores, um escudo contra a iniquidade. Entre as palavras destacam-se a amizade e o perdão, as mais sagradas do dicionário porque encerram o mistério do sublime e do imperecível. Amizade é a palavra mais divinizada em toda a literatura desde o início do mundo. É o amor mais puro porque dá tudo e não exige nada. Como se lê num poema: “Quando as cinzas do sentimento e as folhas murchas vestem o sol de luto, das mãos de um amigo nascem flores. “Amigos são asas de borboleta nas quais repousam pés cansados de desgosto.”

Neste momento, sinto-me assediado pelos abraços de tantas pessoas, muitos anônimos, principalmente brasileiros que encarnam um forte sentimento religioso e que me oferecem orações. Eles me lembram da força de Deus. Não sei neste momento se sou crente ou não, se é verdade que a fé religiosa salva ou aliena. Acredito na fé em Deus dos desamparados que, sem ela, sucumbiriam às suas tragédias. É essa fé que sustenta as convulsões do mundo. Ele é o deus do poeta: “Esboço do mistério nos tecidos cinzentos da espera”.

Sei que não é fácil acreditar em nenhum deus quando os nossos olhos são inundados com imagens de mães indefesas em Gaza, com os seus filhos mortos nos braços por falta de alimentos. Talvez não exista pior inferno no mundo.

Obrigado, amigos, conhecidos e desconhecidos! Sim, neste mundo que às vezes é cruel e às vezes beira o divino, não existem apenas furacões de medo, desgosto e indiferença pelas lágrimas e tristezas dos outros. Há também a chuva suave e fecunda da esperança que se alimenta do silêncio e do anonimato. Do amor livre.

Um professor de teologia da minha juventude, em Roma, o sábio e santo Garrigou Lagrange, confidenciou-me que para ele, que já estava mais próximo da vida após a morte do que nesta terra, das três grandes virtudes cristãs – fé, esperança e caridade -, a que mais lhe custou cultivar foi a esperança.

Hoje gostaria de dizer-lhes, a partir da minha nova experiência existencial, que a esperança não só continua viva. Ela é o que sustenta, e continuará a sustentar os alicerces do mundo. Ingênuo? Talvez, mas sem essa esperança e neste momento cruel, não teria conseguido escrever esta página.

(Transcrito do El País)

Adicionar aos favoritos o Link permanente.