São Paulo — Sem provas concretas, pautada somente no reconhecimento de uma foto, o 95º Distrito Policial (Heliópolis) instaurou um inquérito e indiciou, por roubo de carga, a supervisora de churrascaria Stephany Costa de Macedo, de 26 anos.
A trabalhadora, sem nenhuma passagem criminal, não corresponde às descrições físicas relatadas pelas vítimas do crime, ocorrido no ano passado na capital paulista. Além disso, a supervisora trabalhava no horário em que um motorista e seus auxiliares foram abordados por dois criminosos, em um Honda Civic prata. Fotos de Stephany com os colegas de trabalho em um shopping da zona oeste (imagem em destaque) comprovam o fato.
A Polícia Civil, segundo inquérito obtido pelo Metrópoles, indiciou a trabalhadora sem mesmo colher o depoimento dela. Uma prisão temporária de cinco dias, solicitada pela delegacia de Heliópolis, chegou a ser decretada pela Justiça, mas não foi cumprido pelo fato de a supervisora não ter sido localizada.
“Fiquei sabendo que tinha um processo contra mim de roubo de carga, ainda com sequestro, há umas três semanas, porque um conhecido nos avisou”, disse a supervisora ao Metrópoles, nesta quinta-feira (27/3).
Um amigo, que morava perto do antigo endereço de Stephany, observou que um oficial de justiça procurava por ela no local. Sabendo disso, a supervisora descobriu o processo e acionou um advogado.
“Fiquei assustada. Não sabia que poderia ser presa a qualquer momento. Eu poderia ser parada [pela polícia] no metrô, ou em algum momento em que vou e volto de casa para o trabalho. Fiquei assustada em saber que sou procurada pela polícia, sem ter feito absolutamente nada.”
O roubo de carga
Um motorista e dois auxiliares foram abordados por dois criminosos armados, em um Honda Civic, quando as vítimas descarregavam um caminhão de cervejas, por volta das 9h de 27 de julho do ano passado. O trio foi colocado no carro dos ladrões, na Estrada das Lágrimas, encapuzado e levado para um cativeiro, em local desconhecido, no qual permaneceram por cerca de três horas.
No intervalo de tempo, a carga, avaliada em R$ 31 mil, foi retirada do caminhão, que foi abandonado. As vítimas foram largadas na Rua Francesco Verdi, no Ipiranga, na zona sul paulistana. Os três foram encontrados por policiais militares, que os levaram até o 95º DP.
Reconhecimento de foto
Na delegacia, o trio reconheceu, “sem sombra de dúvidas”, uma foto de Stephany afirmando ser ela “um homem trans” que teria mantido uma arma apontada para eles.
Como relatado pelas vítimas, um dos criminosos era pardo e o outro, branco, baixo, de cabelo curto e tatuagem em um dos lados do pescoço.
A foto da supervisora usada para o reconhecimento é antiga, quando ela estava de cabelos curtos. Atualmente, ela usa os cabelos compridos, além de não ter tatuagem no pescoço.
No entanto, com o reconhecimento fotográfico, a polícia indiciou a trabalhadora, instaurou e finalizou o inquérito.
Denunciada
Com base na investigação do 95ºDP, a supervisora foi denunciada pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP), cujo posicionamento foi referendado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
Em janeiro deste ano, a delegacia de Heliópolis solicitou a prisão preventiva da trabalhadora, não decretada até o momento pela Justiça.
“Show de horrores”
O advogado Reinalds Klemps, que representa a mulher, classificou a investigação policial como um “show de horrores”. Ele já solicitou à Justiça para que a prisão da cliente não seja decretada.
O defensor explicou que o reconhecimento fotográfico deve ser “apenas” para “identificação e materialidade”. “A acusação fala em homem transgênero e isso beira o absurdo. Na ocasião dos fatos, ela estava trabalhando, conforme fotos que foram tiradas no dia do evento criminoso”, pontuou.
Klemps ressaltou que a Polícia Civil não foi “diligente” ao apontar a responsabilidade do crime pautada somente pelo reconhecimento de uma foto.
“Deveria ter solicitado informações e provas por meio da estação de rádio base e demais atos disponíveis ao sistema de segurança pública, para entregar um trabalho digno que proteja a nossa população e não acusar de forma injusta e irresponsável.”
Stephany afirmou que, após solucionar o caso, pretende processar o estado, para que “no mínimo” pague os custos do processo. “Estou pagando minha defesa em algo que não fiz. No mínimo, preciso que me devolvam esse dinheiro.”
O 95º DP foi questionado sobre a investigação, por meio de Secretaria da Segurança Pública (SSP). Até a publicação desta reportagem, nenhuma manifestação foi encaminhada. O espaço segue aberto.
Chavoso da USP
O caso de Stephany se assemelha ao do influenciador Thiago Torres, conhecido nas redes como Chavoso da USP, cuja foto foi incluída em uma lista de reconhecimento de suspeitos, em um inquérito de sequestro, ocorrido em 2022.
Ele soube do caso porque, na ocasião, um amigo advogado, que trabalhava na ocorrência, reconheceu a foto dele.