A prisão injusta de Justino

Você lembra o que fez em dois de setembro de 2020? Nesse dia, o STJ confirmou o afastamento de Wilson Witzel do governo do Rio. O Brasil registrou 4 milhões de casos de coronavírus e 123 mil óbitos na pandemia – ainda faltavam 4 meses para a vacina espetar o primeiro braço e o uso de máscara era uma polêmica; a nota de 200 reais entrou em circulação. Nesse dia dois, o músico Luiz Justino conheceu as engrenagens do racismo estrutural.

Justino estava em um bar no centro de Niterói com mais três amigos depois de um dia de trabalho quando a polícia chegou gritando: “Oh seus vagabundos, tão fazendo o que aí?!” Um dos amigos respondeu: “Aqui não tem vagabundo não, é tudo trabalhador”. Pronto, os quatro foram para a parede e forneceram seus documentos para checagem. Três foram liberados. Luiz Justino teve outro destino. O sistema apontou uma ordem de prisão em seu nome. Justino disse que se tratava de um erro, era impossível. Nesse momento ele foi raptado pelo procedimento padrão. Amedrontado, entrou na viatura e foi levado à delegacia para averiguação.

Aqui vale um apontamento do artigo “Pele alvo”: o suspeito natural. Considerações sobre a prisão injusta do músico Luiz Justino”, escrito por Beatriz Fernandes Coelho Gomes e Felipe Berocan Veiga e publicado na Revista Antropolítica, da Universidade Federal Fluminense (UFF). A palavra vagabundo não entra no diálogo acima por acaso. Ela remete à “Lei da Vadiagem”, contravenção no Código Penal de 1941, “calcada sobretudo no racismo de cor e no preconceito de classe em relação às populações pretas, pobres e marginalizadas” é “uma forma de tecnologia que permite ao Estado exercer o controle e poder sobre essa população”

Na delegacia, revelou-se a razão da prisão. Um assalto à mão armada ocorrido no dia 5 de novembro de 2017, por volta das 8h30, no bairro da Vila Progresso, Niterói. A vítima o reconheceu por uma foto enquanto registrava o Boletim de Ocorrência. Sua prisão se efetivou e o procedimento padrão continuou, obrigando-o a ficar nu, pular e se agachar para provar que nada escondia em seu corpo. Depois o jovem foi colocado no “porquinho”, um espaço sem ventilação, iluminação e banheiro. No dia seguinte, foi transferido para o Presídio de Benfica.

O racismo estrutural, segundo Silvio Almeida, é um processo histórico e político que “cria condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistemática”. O conceito aterrissa com cru ao fazer três perguntas: Se Justino não teve nenhum comportamento suspeito, por que foi abordado?  Se nunca teve passagem pela polícia, como sua foto estava no banco de imagens da delegacia? Como sua digital constava no banco de dados da polícia?

Seu perfil: jovem negro, 23 anos, cabelo dreadlock, de comunidade de baixa renda de Niterói. Para o racismo estrutural, qualquer pessoa assim é suspeita, qualquer pessoa assim é uma ameaça. E deve ser abatida ou encarcerada. Mas Justino teve uma sorte: uma rede de apoio.

Na infância, Justino foi morar com sua tia e primos na Grota do Surucucu, zona sul niteroiense. Dois primos frequentavam a Orquestra Cordas da Grota, projeto social de ensino de música erudita. Com 30 anos de existência, a Orquestra é Patrimônio Imaterial da Cidade de Niterói e do Estado do Rio de Janeiro. Com seis anos, Justino mergulhou no projeto e abraçou o violoncelo. Em 2020, seu trabalho dividia-se entre apresentações em eventos, restaurantes e em uma rua de um bairro de classe média-alta da cidade.

Prontamente, integrantes da orquestra acionaram a mídia e os movimentos sociais. A prisão injusta de Justino ganhou repercussão nacional e foi noticiada nas TVs Globo, SBT, Record, Cultura e sites de mídia independente como Mídia Ninja e Geledés. Posteriormente, houve uma matéria no Fantástico.

Quando há pressão, a Justiça anda. O músico teve sua prisão revogada no dia 6 de setembro de 2020. Conforme anexado ao processo, em 2017 Luiz Justino era contratado de uma padaria e tocava nas manhãs de domingo, entre 9h e 11h30. No horário do referido assalto, Justino trabalhava. Quantos jovens negros inocentes estão presos neste momento por não terem uma rede de apoio que os defenda?

Ele foi absolvido do processo no dia 9 de junho de 2021. Temos uma tragédia com final feliz? É difícil quando se trata de racismo no Brasil. Dois anos após esse sofrimento, Justino foi preso novamente, exatamente nas mesmas condições. Parado em uma blitz, ele é obrigado a sair do carro e tem seus documentos checados. Mesmo inocentado, o mandado de prisão permaneceu no sistema do Conselho Nacional de Justiça. E mais uma vez, Justino foi levado à delegacia. Dessa vez, o erro foi reconhecido e ele pode voltar para sua casa e abraçar sua filha.

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