Pela primeira vez, a Faculdade de Direito da USP elegeu uma mulher como professora titular na área de Teoria Geral do Estado. Nina Beatriz Stocco Ranieri foi aprovada em concurso público para ocupar a cátedra deixada pelo atual ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski. A banca examinadora foi presidida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes.
Sua aula de erudição — Ideia atual de Estado Democrático — propôs uma reflexão precisa sobre os riscos que ameaçam as democracias contemporâneas. A corrosão é por dentro, institucional, silenciosa, promovida por regimes que mantêm as aparências democráticas enquanto esvaziam seus fundamentos.
O tema não poderia ser mais atual. Em tempos de desgaste da cultura política e descrédito nas instituições, é essencial recuperar os alicerces do pacto democrático. Foi o que Nina fez em uma exposição densa, articulada e politicamente necessária.
Com referências como Kim Lane Scheppele, Steven Levitsky, Daron Acemoglu e Hannah Arendt, a professora mostra que os ataques à democracia hoje não se manifestam por rupturas abruptas, mas por erosões graduais. A ameaça vem de líderes eleitos que, uma vez no poder, distorcem as regras do jogo e fragilizam os pilares da ordem constitucional.
Ao contrário dos regimes abertamente autoritários, os modelos iliberais operam sob fachada institucional. Manipulam procedimentos, esvaziam a função das instituições de controle e convertem a legalidade em instrumento de dominação. A Constituição permanece — mas perde sua força como referência comum.
Assim é na Hungria de Viktor Orbán, na Rússia de Vladimir Putin, na Polônia do partido Lei e Justiça, na Turquia de Erdoğan e na Venezuela de Nicolás Maduro — governos que mantêm eleições e símbolos democráticos enquanto minam seus fundamentos por dentro. Nos Estados Unidos, sob Donald Trump, os ataques às instituições vieram à tona na tentativa de subverter o resultado das urnas e na invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021.
Num cenário marcado pela desinformação e polarização digital, a aula de Nina abre espaço para refletir sobre o papel das redes sociais na crise da democracia representativa. Hoje, algoritmos promovem discursos simplificadores, fortalecem lideranças populistas e corroem a confiança nas instituições — fenômenos que afetam diretamente a qualidade do debate público e a resiliência democrática. A tecnologia, longe de neutra, tornou-se parte ativa da disputa pelo imaginário político.
A fidelidade à democracia exige vigilância constante, sobretudo quando discursos populistas apelam ao coletivo para justificar o desprezo pela técnica, pela legalidade e pela mediação institucional. Nem toda democracia em crise se converte em autoritarismo, mas todo autoritarismo começa pela degradação silenciosa dos seus freios e contrapesos.
O foco da aula, no entanto, não é apenas a denúncia. É também a defesa de um caminho: não basta preservar os ritos formais. É preciso sustentar uma cultura política que resista às tentações do poder sem limites. E isso começa pela educação — não só a educação escolar, mas a formação política e institucional da cidadania.
Ao afirmar que “as democracias decepcionam, mas não traem”, Nina propõe uma distinção essencial: a frustração com os limites da democracia não deve abrir espaço para soluções autoritárias travestidas de renovação. A saída não está na sua negação, mas em sua radicalização pela via da responsabilidade, da transparência e da participação.
A aula propõe um olhar firme sobre a complexidade das democracias contemporâneas, recusa os atalhos do autoritarismo e revaloriza o pacto democrático que nos sustenta como sociedade. Os conceitos clássicos de democracia e Estado estão em transformação — e essa mudança exige mais do que normas jurídicas ou decisões judiciais. Exige práticas culturais, educação política e um pacto ético em torno das regras do jogo.
Esse ponto não é alheio à trajetória da professora. Nina Ranieri há décadas atua na defesa da educação pública como um pilar da cidadania. Em sua passagem por cargos na USP, no Ministério da Educação e em organismos internacionais, sempre reafirmou que formar sujeitos capazes de compreender as instituições é uma tarefa tão urgente quanto garantir a equidade no acesso à escola. Sua visão da democracia é inseparável de uma aposta na educação como instrumento de emancipação — e como antídoto contra as soluções autoritárias pretendidas como de eficiência.
Em tempos de ceticismo, sua aula é um gesto de confiança crítica. Propõe a educação como escudo contra o autoritarismo, a crítica como antídoto ao cinismo, a esperança racional como base de reconstrução institucional.
E não é irrelevante que essa lição venha do interior da universidade pública. A aula de Nina é uma forma de resistência — e de compromisso. Sua vitória é um justo reconhecimento pessoal, mas também um lembrete de que a universidade deve continuar sendo espaço de pensamento rigoroso e defesa vigilante da democracia.
No Brasil de hoje, isso vale muito.
Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação