Quando o Brasil escolheu escravizar crianças

“Moleques e moleconas, além de algumas negras que sejam vistosas, é a gente que eu quero. Nada de barbados”. Essa foi a mensagem do traficante de escravizados Joaquim Ribeiro de Brito para seu agente no Rio Zaire em dezembro de 1823. Era um sinal de mudança no perfil dos escravizados. Os jornais anunciavam que o fim do tráfico era eminente, e as elites brasileiras decidiram acelerar o comércio de crianças africanas – com aumento expressivo de meninas – para prolongar o trabalho forçado de negras e negros no país.

Foi também uma transformação comercial, que alterou a dinâmica do tráfico no interior do Brasil. O número de africanos que chegaram ao país manteve a média entre 1809 e 1818. O aumento começou a ser registrado entre 1819 e 1825 e alcançou o ápice entre 1826 e 1830, reduzindo drasticamente após 1831.

O motivo. Em novembro de 1826, a Inglaterra e o Brasil selaram um acordo que estabelecia o fim do tráfico de africanos nos próximos três anos. Como ele só foi ratificado um ano depois, 1830 foi o ano limite para os comerciantes lucrarem com a crueldade. Depois disso, seriam considerados piratas. Para eles, tempo urgia e navegar era preciso.

Dois exemplos. A cidade de Campos, no Rio de Janeiro, recebeu 35 mil escravos entre 1809 e 1833 – desse total, mais de 27 mil chegaram entre 1822 e 1830. A província de Minas Gerais recebeu no mesmo período (1809-33) 95 mil africanos. Entre 1823 e 1830, chegaram à província cerca de 55 mil pessoas.

Essas mudanças são tema do artigo “tráfico interno de escravos a partir do Rio de Janeiro, 1809-1833″, escrito por Manolo Florentino (in memorium), Cacilda Machado e Carlos E. Valencia Villa, publicado na revista Afro-Ásia da UFBA (Universidade Federal da Bahia). Esse período foi escolhido porque em 1809 a Seção de Passaportes da Intendência Geral da Polícia começou a registrar a entrada e saída de pessoas pelo Rio de Janeiro. Já 1833 marca a possibilidade de averiguar o impacto da repressão ao tráfico, três anos após sua proibição.

Outra diferença foi o aumento da participação de grandes empresas, que conseguiam transportar até 30 pessoas. Até 1820, os pequenos traficantes, que levavam até 4 escravizados, transportavam 81% dos africanos; em 1826-1830 representavam 66% desse total.  Cerca de 95% dessas viagens encaminharam-se do Rio de Janeiro para Minas Gerais, interior do Rio de Janeiro, São Paulo e o Sul do país.

O estudo explica que entre 1809 e 1825, o tráfico para a Região Sul cresceu mais de 6 vezes e, a proporção de mulheres passou de 5% a 30%. “Esse foi o caso, mais ou menos semelhante, do Rio de Janeiro e São Paulo. Porém, a situação de Minas Gerais foi mais radical, pois no quinquênio anterior a 1830, se despacharam 0,6 homens para cada mulher, o que quer dizer que recebeu mais mulheres do que homens, justo antes do fim do tráfico legal atlântico”, analisa o artigo.

Entretanto, grande parte desses homens e mulheres eram na verdade crianças, e os meninos eram o maior grupo. “Em Minas Gerais e nos Portos do Sul, as meninas chegaram em quantidades semelhantes às dos meninos. No Rio de Janeiro e em São Paulo, as crianças masculinas superaram as femininas”. Isso teve forte impacto na demografia e nas relações dentro de sociedades regionais.

E como era a socialização dessas crianças?. Como exemplo, temos uma menina de três anos que chegou de África e que partiu em 12 de março de 1828 do Rio de Janeiro para Minas Gerais sem nenhum familiar. O trabalho tece três hipóteses. Suas aprendizagens foram exclusivamente brasileiras e escravizadas, sem vínculos com África; sua educação deveu-se aos escravizados mais velhos, que recriaram uma África no Brasil. Ou o contato com a África jamais cessou porque a informação circulava entre os dois continentes. Nessa integração, talvez resida uma das raízes do Brasil.

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