Ao morrer um papa: confronto de fé, poder e humanidade

O papa Francisco, frequentemente saudado como “progressista” por ter colocado no centro de seu pontificado temas urgentes — do cuidado com os pobres à acolhida de migrantes, benção às pessoas LGBTs —, nos lembra que o verdadeiro avanço está no respeito inegociável à dignidade humana. Defender a justiça social, o diálogo inter-religioso e a tutela ambiental não é um luxo de visionários, mas o mínimo civilizatório que qualquer liderança moral deve garantir: reconhecer cada pessoa como sujeito de direitos, acolher sua história e sua dor, e transformar esse reconhecimento em políticas efetivas. Se, para alguns, chamar o papa de progressista soa polêmico, que fique claro: progredir, significa, sobretudo honrar a humanidade em cada rosto que se aproxima.

Esses princípios são fundamentais para uma instituição que se diz alicerçada no amor e no respeito ao próximo. A verdadeira contradição está em negar ou supervalorizar aquilo que deveria ser o mínimo de qualquer prática cristã. Francisco, ao questionar (em alguns momentos) estruturas consolidadas e naturalizar mudanças profundas, mostrou que a fé autêntica se traduz em ações concretas — não em gestos simbólicos vazios — e que o cuidado com a dignidade humana deve permear cada decisão e cada rito.

Infelizmente, o papa faleceu. E agora? E com ele se encerra mais um ciclo de um dos últimos bastiões do poder simbólico e real que sobreviveu às revoluções do tempo. A morte de um papa não é apenas um luto religioso — é um acontecimento político, cultural e geopolítico. O papa, mesmo em um mundo cada vez mais secularizado, ainda é uma figura de Estado, chefe de um território, líder de mais de um bilhão de fiéis, interlocutor diplomático com o poder de mover corações e cúpulas.

O legado do papa que parte será interpretado conforme a lente de quem o observa. Para uns, ele foi um reformista contido, que ousou falar de fraternidade, da necessidade de cuidar dos pobres, do planeta, dos migrantes. Para outros, um conservador disfarçado de progressista, que se esquivou dos embates mais profundos que a história exigia da Igreja: as violências promovidas ou silenciadas pela instituição que representa.

A escravidão transatlântica e a Inquisição são duas das maiores feridas da história da humanidade — e ambas tiveram cumplicidade, quando não estímulo direto, da Igreja Católica Apostólica Romana. Ao longo dos séculos, bulas papais autorizaram o tráfico negreiro e legitimar o domínio europeu sobre povos africanos e indígenas. Foi sob a bênção do Vaticano que reis e navegadores europeus fincaram estandartes e ergueram pelourinhos. A doutrina do “descobrimento” era, na verdade, uma teologia da dominação.

Sim, houve pedidos de perdão. João Paulo II, em 2000, em um gesto histórico, reconheceu que membros da Igreja cometeram pecados gravíssimos — incluindo a escravidão e as perseguições inquisitoriais. Francisco, por sua vez, deu continuidade a esse tom mais autocrítico, condenando o racismo estrutural, pedindo desculpas em viagens à África e aos povos originários do Canadá. Mas, até aqui, não houve um reconhecimento direto e institucional de culpa. A Igreja fala em “pecados dos filhos”, como se a estrutura que permitiu tais abusos fosse alheia ao próprio corpo da instituição. E ainda menos se falou em reparações concretas.

Reparar é mais do que pedir desculpas. É confrontar a história, abrir os arquivos, devolver bens, contribuir ativamente para políticas de memória, indenização e educação. Reparar é dizer com todas as letras: a escravidão foi um crime contra a humanidade. A Inquisição, um projeto de terror teológico. E em ambos, a Igreja teve responsabilidade.

Com a morte do papa Francisco, inicia-se um novo conclave. Fumaça branca se anuncia no horizonte. O mundo observa. A pergunta que ecoa nos corredores do Vaticano e nas periferias do planeta é: que tipo de papa o século XXI precisa? Talvez um que finalmente rompa com o silêncio conveniente da História. Que não apenas diga “me perdoem”, mas se levante, com o peso de São Pedro e de todos os mártires que virão, e diga: vamos reparar. Vamos devolver. Vamos recomeçar.

O próximo papa deveria ser a ponte entre o arrependimento e a justiça. Porque a história, quando não é enfrentada, se repete. E estamos vendo e vivenciando que tal máxima é verdadeira.

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