A Constituição dos EUA é sempre mencionada como exemplo de estabilidade e funcionalidade da sociedade americana. Está longe de ser um estatuto que estabelece regras para a utopia da perfeição, ideal inalcançável pela natureza humana. Nela estão inscritos o sacrifício de autênticos patriotas, a força determinante da liberdade contra a opressão do poder e um debate público na imprensa originalmente publicados em Nova York (85 artigos/ensaios sob o título The Federalist), escritos por Alexander Hamilton, James Madison, John Jay, servindo como argumentos favoráveis ao constitucionalismo, às liberdades individuais e aos pesos e contrapesos no exercício do poder. Uma engenhosa construção nem por isso a salvo dos apetites vorazes dos ditadores
A caminho de completar dois séculos e meio de vigência (escrita em 1787, na Convenção da Filadélfia, sob fortes tensões dos conflitos federativos e a questão da escravatura; ratificada em 1788; vigente em 1789), a Lei Suprema dos Estados Unidos ultrapassou graves contextos históricos com um diploma legal com sete artigos (Organizavam os poderes); as dez primeiras emendas conhecidas como o Bill of Rights e a 27ª e última Emenda ratificada em 7 de maio de 1992.
Ao longo da experiência histórica, a virtude da concisão foi precisa na organização da política do estado nascente ao definir atribuições e limites dos Poderes, uma robusta proteção às liberdades individuais, e à igualdade dos cidadãos.
Para Alexis de Tocqueville, autor da admirável obra A Democracia na América o que mais vivamente lhe atraiu a atenção foi a “igualdade de condições”: “Um Estado democrático, constituído dessa maneira, a sociedade não será imóvel; nele, porém, os movimentos do corpo social poderão ser regulados e progressivos, embora encontremos nesse Estado menos esplendor do que no seio da aristocracia, também encontraremos menos misérias; os prazeres dentro dele, serão menos extremos, e mais geral o bem-estar; as ciências menos perfeitas, mas a ignorância mais rara; os sentimentos menos enérgicos, porém mais suaves os hábitos; encontrar-se-ão dentro dela mais vícios e menos crimes” (Trecho da introdução escrito em 1835, P. 16, Ed. Itatiaia Ltda, 3ª Edição: BH, 1987).
Ao concluir a introdução (p. 21), deixa claro sua aversão ao acesso privilegiado da aristocracia europeia ao Poder, contrapondo um “mundo novo” em que “procurei ver não de maneira diferente, porém, mais longe que os partidos; e enquanto eles se ocupam com o amanhã eu preferi pensar no futuro”.
Caso o grande pensador e escritor francês empreendesse, hoje, uma viagem de estudos sobre democracia contemporânea, com foco na América, estaria profundamente chocado. O risco da “tirania da maioria” passou a depender da falsidade tecnológica, associada à mentira disseminada pelos delinquentes cibernéticos. A imagem humana se tornou uma manipulação digital.
É bem verdade que a percepção sociológica de Tocqueville confirma o papel fundamental quanto aos organismos intermediários e à descentralização de poder, revigorando a democracia. Porém, é pouco para as reiteradas ameaças à democracia liberal e, mais gravemente, à estabilidade global.
Isto se deve, Professor Tocqueville, ao que o senhor mais temia: o poder absoluto como um instrumento político capturado por uma autocracia plutocrática com força suficiente para erodir as instituições secularmente construídas. Está em curso pelo presidente Trump, o demolidor de instituições e candidato a Rei do Mundo. Encaminho ao seu conhecimento ações predadoras contra as instituições.
Na escalada predatória, acusou de fraudulenta a eleição em que foi derrotado, estimulando seus partidários a resolverem disputa eleitoral num “julgamento por combate”. Um grave atentado contra o Capitólio, símbolo da democracia representativa.
Nos cem primeiros dias de governo, atingiu frontalmente o alicerce das sociedades democráticas: a confiança; declarou guerra à ordem internacional arremessando todas as baterias de misseis tarifários criando o ambiente de sua preferência: o caos; agrediu os direitos das pessoas ao ordenar um impiedoso programa de deportação (e nesta senda malvado estende a mão ao ditador/torturador Bukele contra um cidadão indefeso Kilmar Garcia): de fato, pessoas não importam.
Está indo além do que prometeu na companha. Mais do que um delinquente político e penal assumiu a cruel tarefa de demolidor de instituições: não compreendeu verdadeira dimensão da grandeza americana que soma o poder econômico ao poder do conhecimento.
Na respeitável visão do renomado pensador e economista Eduardo Giannetti, Trump “está regredindo ao mercantilismo” ao referir seis consequências do tarifaço: redução do comércio internacional, desvio e reconfiguração dos fluxos de comércio, perda de eficiência das economias em razão do protecionismo, inflação, recessão, paralisia de investimentos e dúvida se os títulos do Tesouro americano são o porto seguro diante das crises internacionais e momentos de incerteza (Entrevista na edição da Folha de 19/04/2025).
Quanto ao poder da inteligência, a geração dos conhecimentos e o vigor das inovações tecnológicas, Trump estrangula Universidades dos EUA, os melhores centros excelência do mundo. Resultam em perdas irreparáveis que matam por asfixia a razão crítica, a maior inimiga do poder despótico. Que o exemplo de rebeldia da Universidade de Harvard encoraje outras instituições no enfrentamento da jaula ideológica com que Trump busca imobilizar a liberdade acadêmica.
Por fim, existem ativos intangíveis que convivem harmonicamente numa sociedade democrática como a coesão social, a cooperação solidária, o respeito aos diferentes e o compartilhamento de sentimentos (definidos por um conceito de uso corrente: empatia). Somente a liberdade, protegida e exercida amplamente, conduz ao humanismo. Com virtudes e pecados, os EUA chegaram a uma posição de liderança mundial na guerra, na paz, mas também na ajuda humanitária.
Além de demolidor de instituições, Trump é a afirmação perversa da proximidade pacífica e fraterna. Do jeito que vai, o provérbio prevalecerá “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Minha crença, no entanto, é que a singular virtude democrática marca o tempo para a alternância pacífica dos governantes. As instituições, bem estruturadas e bem defendidas, resistem e superam seus algozes.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda