O esquema de descontos indevidos executado pela Confederação Nacional dos Agricultores Familiares (Conafer) contra aposentados e pensionistas ganhou a dimensão bilionária que se conhece atualmente por causa das falhas nos sistemas de controle do INSS e da Dataprev. Mais do que um golpe sofisticado, a fraude expôs brechas operacionais, burocracia lenta e uma confiança excessiva em entidades conveniadas, revelando um sistema vulnerável, especialmente quando desafiado por práticas coordenadas de má-fé. O escândalo foi revelado pelo Metrópoles em uma série de reportagens publicadas a partir de dezembro de 2023 (saiba mais abaixo).
O ponto de partida da fraude foi o Acordo de Cooperação Técnica firmado entre o INSS e a Conafer em 2017. O documento autorizava a confederação a solicitar, junto à Dataprev, descontos mensais de 2% nos benefícios de seus supostos filiados, desde que houvesse autorização prévia dos beneficiários.
Na prática, no entanto, essas autorizações eram ignoradas ou fabricadas posteriormente. A confederação enviava listas com milhares de nomes e CPFs, e os descontos eram processados automaticamente, sem que fosse exigida comprovação imediata do consentimento.
Essa lacuna operacional escancarou o problema: o sistema funcionava com base na confiança de que as entidades cumpririam as regras, mas sem mecanismos de verificação no momento da inclusão dos descontos. O INSS se limitava a fiscalizações pontuais e posteriores, enquanto a Dataprev apenas executava os comandos recebidos, sem filtros ou validações que detectassem alterações em larga escala ou volume anormal de cadastros.
Um dos períodos mais críticos ocorreu entre abril e julho de 2020, durante o fechamento das agências da Previdência por causa da pandemia. Nesse intervalo, mais de 73 mil novos descontos atribuídos à Conafer foram inseridos no sistema, sem que houvesse qualquer tipo de auditoria prévia ou alerta automático sobre a movimentação incomum.
As falhas, porém, não pararam por aí. A confederação foi formalmente questionada sobre as autorizações em julho daquele ano. A resposta veio com justificativas vagas e alegações de dificuldades logísticas.
O INSS, mesmo diante de uma enxurrada de reclamações de beneficiários que desconheciam a entidade, demorou a reagir. A atuação, segundo apontam investigações, foi mais reativa do que preventiva. Já a Dataprev, apesar de operar uma das maiores bases de dados do país, não dispunha de ferramentas de checagem cruzada que pudessem identificar padrões suspeitos de forma automática.
Outro fator preocupante revelado nas investigações foi o possível uso indevido de dados de beneficiários. A denúncia que deu origem à apuração da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), ainda em 2021, apontava que a Conafer teria obtido CPFs por meio de acordos com terceiros ou, possivelmente, com apoio de servidores públicos. Essa linha ainda é investigada, mas já evidencia a fragilidade na proteção das informações dentro do próprio sistema previdenciário.
Internamente, a Conafer mantinha práticas que dificultavam a fiscalização. Funcionários eram obrigados a assinar termos de confidencialidade que impediam a divulgação de informações sobre suas atividades. A documentação sobre os filiados, quando apresentada, continha assinaturas suspeitas e inconsistências, muitas delas produzidas por empresas contratadas para montar dossiês falsos e “regularizar” os cadastros, conforme depoimentos colhidos pela polícia.
Farra no INSS
O escândalo do INSS foi revelado pelo Metrópoles em uma série de reportagens publicadas a partir de dezembro de 2023. Três meses depois, o portal mostrou que a arrecadação das entidades com descontos de mensalidade de aposentados havia disparado, chegando a R$ 2 bilhões em um ano, enquanto as associações respondiam a milhares de processos por fraude na filiação de segurados.
As reportagens do Metrópoles levaram à abertura de inquérito pela PF e abasteceram as apurações da Controladoria-Geral da União (CGU). Ao todo, 38 matérias do portal foram listadas pela PF na representação que deu origem à Operação Sem Desconto, deflagrada em 23 de abril, e que culminou nas demissões do presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, e do ministro da Previdência, Carlos Lupi.