Não sabendo que era impossível, Lady Gaga foi lá e fez. E não, não estou falando do recorde de público, mas do fato de que a cantora conseguiu alcançar, ainda que por um instante pequeno e fugaz, algo que o governo atual, e a esquerda de forma geral, tem tido profunda dificuldade: agradou, ao mesmo tempo, “identitários” e “bolsominions”. Ao contrário do que a maioria esperava, dada a repercussão negativa do show de Madonna, enquadrado como exemplo de “degeneração”, o espetáculo de Lady Gaga em Copacabana gerou pouquíssimo ruído moralista. Ainda que discursos religiosos tenham ganhado certa repercussão nas redes sociais, a velha narrativa de pânico satanista não ecoou nem alto, nem longe. Na verdade, muito pelo contrário, no Instagram oficial da ex-deputada evangélica Carla Zambelli, por exemplo, elogios abertos à cantora foram tecidos. O segredo do encanto de Lady Gaga? Um velho conhecido: a performance populista.
Para compreender como o populismo estruturou parte da performance de Lady Gaga não precisamos ir muito longe: não bastasse se projetar em diversos telões enfileirados — estilo líder supremo — vestindo as cores da bandeira nacional em dois looks diferentes, a diva pop ainda fez jus à sua suntuosa faixa presidencial, que portava com um discurso que transbordava carisma. Da sacada cenográfica, com a bandeira brasileira estendida, ela se dirigiu diretamente ao “povo brasileiro”. Emocionada, destacou o grande coração, o brilho, a liberdade e o admirável espírito dos brasileiros, afirmando que, ali na praia de Copacabana, juntos estavam fazendo a história. O efeito dessas escolhas estéticas não poderia ser outro que o encanto populista.
Quem acompanhou a performance, seja pela televisão ou no vivo, experimentou o espetáculo sob uma perspectiva dupla: a da cantora e a da plateia. Foi um momento de espelhamento clássico: o público amou a “líder” com a mesma intensidade com que acreditou ser amado por ela. Ambos se elevaram juntos, numa espiral de êxtase coletivo. Por um instante, Gaga estendeu seu status de celebridade internacional ao povo brasileiro, que, em troca, reconheceu e reforçou ainda mais sua autoridade simbólica.
Típica de movimentos e lideranças populistas, essa fusão fortaleceu tanto a figura de Lady Gaga quanto a ideia de um “povo brasileiro”. Mas essa é só uma parte da história. Precisamos lembrar que a cantora também trouxe para o coração de seu show elementos como o grotesco, o bizarro e o queer — estéticas que, historicamente, enfrentam profundas dificuldades em se articular com uma ideia de orgulho nacional compartilhado, principalmente desde a perspectiva de atores da extrema-direita. Como, então, Gaga conseguiu “furar a bolha” e encantar, ou ao menos silenciar, as críticas vindas de atores que historicamente a criticariam?
Por um lado, podemos teorizar que as emocionadas interpelações ao povo brasileiro, a ostentação da bandeira e até mesmo o uso da camisa da CBF pelos dançarinos garantiram à cantora uma possibilidade de construir a sobreposição estética, permitindo que tudo aquilo considerado “estranho”, “degenerado” ou “queer” fosse ignorado, subjugado ou até mesmo purificado. Em outras palavras, sem perceber, Lady Gaga teria se apropriado de uma estética que suavizou elementos mais transgressores, tornando sua performance mais universalmente palatável e menos suscetível a críticas. Embora eu considere essa uma hipótese extremamente importante — pois permite que a estética e a performance são pontos cruciais na construção de uma mínima partilha do comum —, precisamos ainda levar em conta um outro lado.
É preciso considerar que a força da performance populista de Lady Gaga talvez resida justamente na capacidade de mostrar que, do ponto de vista da estética, não há contradição entre transgressão e reafirmação da lei. Em vez de apenas suavizar elementos mais disruptivos, sua apresentação também os exacerba, como se a transgressão, longe de ser diluída, fosse incorporada e amplificada dentro de uma estética nacional-populista. Nesse sentido, a cantora mostra que talvez a suposta contradição entre a ideia de povo e a estética queer seja muito menos sólida e resistente do que se pensava. Isso é uma teorização de extrema importância, pois vai diretamente contra o senso comum que afirma não ser possível incorporar elementos que desafiam a norma dentro do que é considerado como a partilha sensível do comum.
No fim das contas, o que nos ensina Lady Gaga é que um populismo de esquerda não deveria temer jogar com elementos estéticos que, em tese, contradizem seus objetivos políticos. O que parece encantar e mobilizar é justamente a capacidade de explorar e, acima de tudo, dominar a tensão entre aquilo que antes era pensado como antitético. Não se trata, portanto, de suavizar ou diminuir a diferença, mas de repensá-la a partir daquilo que pode parecer ainda mais “monstruoso”.
Renato Duarte Caetano é doutorando no Programa de Pós-graduação em Ciência Política na UFMG e bolsista Fulbright na Universidade de Michigan e Universidade da Califórnia Irvine. Artigo transcrito do Le Monde Diplomatique Brasil