Quilombos literários

Inaugurar uma livraria especializada em autores ou temas negros é um ato político e uma declaração de amor aos livros – nem sempre acompanhada por uma estratégia comercial. Não é coincidência existirem poucas iniciativas. Uma das pioneiras é a Contexto, de Nair Araújo, mulher negra que abandonou os trabalhos domésticos para militar em sua livraria nos anos 1970.

Nascida em Minas Gerais, Nair Theodora Araújo (1931-1984) ocupava o dia com o trabalho de empregada doméstica na casa da família Herz; à noite, mergulhava em mil e uma leituras. Com o tempo, formou um grupo de reflexão com intelectuais negros – participou da Associação Cultural do Negro e do Teatro Experimental do Negro. Da casa, passou à funcionária da biblioteca circulante que Eva Herz abriu na década de 1960 em São Paulo, que desembocaria na Livraria Cultura anos depois.

A vida é feita de autonomia. Despediu-se de Eva e abriu as portas da Livraria Contexto em 1972, na Alameda Tietê. Tinha dois sócios, brancos e judeus. A parceria durou ao menos três anos. Da Alameda Tietê, foi para o bairro da Aclimação, onde foi administrada pela filha, que afirma: “É uma livraria normal. Só com o diferencial do espaço pra escritores negros, artistas plásticos negros, mas não só negros”, em entrevista em 2018.

Contar algumas experiências de livrarias negras em São Paulo, Rio e Belo Horizonte é o tema do artigo “Livrarias Negras no Sudeste Brasileiro (1972-2018)”, escrito por Márcio Augusto Medeiros da Silva e publicado na Revista Dados, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 2024.

Nessas décadas o autor analisa as histórias das livrarias Contexto (SP), Eboh (SP), Griot (SP), Sobá (BH), Kitabu (RJ), Iná Livros (SP) e Africanidades (SP), através de entrevistas com seus proprietários – na verdade, proprietárias negras, com mais de 30 anos e escolaridade superior. No início, o livro é militância que deságua em falência. A partir dos anos 2000 é uma militância que tenta se sustentar como negócio.

A Eboh Livraria e Editora começou suas atividades em 1986 no Bixiga. Era uma sociedade de quatro homens negros: um poeta e administrador de empresas, um professor de Física e metroviário, um sociólogo e analista de sistemas, um advogado e poeta. Nenhum deles com experiência no ramo, todos militantes do Movimento Negro Unificado (MNU), todos profissionais liberais que trabalhavam na livraria à noite, após o expediente.

“Eboh é uma alusão ao Ebó do candomblé, alimento para a cabeça, signo da orixalidade”, explica o autor. A livraria era exclusiva para autores negros e africanos. Dois anos depois, apenas dois sócios mantinham o negócio. Embora militantes, não houve uma aproximação ou apoio do MNU. “Eu não sei se não viam isso como iniciativa pequena burguesa, o normal é ser de esquerda e ser um pouco fora de mercado, capitalista”, lembra um dos sócios.

Ao final, a editora publicou apenas um livro, em parceria com a Editora Cortez: África do Sul: apartheid e resistência , do sociólogo holandês e professor na Universidade de Brasília Klass de Jonge. Foi em 1991, seu último ano de existência.

O artigo fala também da Sobá Livraria e Café, fundada por duas professoras formadas em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Instalada em um bairro nobre da zona sul da capital mineira, funcionou entre 1999 e 2018. Soba significa velho sábio responsável pela transmissão dos conhecimentos à comunidade em suaíle, língua da África oriental. A parceria começou como um estande em eventos e oito anos depois ganhou um espaço físico e se transformou em uma livraria, café e galeria. O sonho de suas donas em criar uma editora não se realizou.

Nas experiências mais recentes, como a carioca Kitabu e paulistana Africanidades reforça o protagonismo feminino negro e educação superior, assim como o comércio online a dificuldade para manter um espaço físico. Se até os anos 1990 cada projeto acreditava ser pioneiro e inovador, pois desconhecia as experiências de seus contemporâneos, essa geração está atenta aos seus pares. Ainda que, como analisa o autor do artigo, isso não estabeleça uma rede de solidariedade e troca de experiências.

“A existência da literatura negra brasileira no sistema literário: produção, circulação e recepção são componentes de um circuito frágil, em permanente oscilação e marginalidade econômica e política, apesar dos esforços de seus participantes”, conclui o artigo.

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