A notícia estava perdida no meio de tantas outras na página 3 do jornal A Noite, edição de 4 de abril de 1913 – lá se vai mais de um século. O título perguntava em caixa alta: “É HOMEM? É MULHER?”
Relatava estranho acontecimento de uma tarde de sexta-feira na cidade do Rio de Janeiro que, àquela altura, tinha pouco mais de 1 milhão de habitantes (hoje tem seis vezes mais).
Segue a notícia da mulher que foi perseguida no meio da rua por uma turba que acreditava ser ela um homem vestindo roupas femininas:
“– É homem?
— É mulher?
E uma senhora, tipo esguio, trajando saia preta, blusa de voile e trazendo chapéu de palha de feitio masculino, entrou às 3 horas da tarde perseguida por um grupo numeroso que a invectivava de ser homem, num estabelecimento de chapéus, à Rua Sete de Setembro.
A sua figura, porém, bastante antipática, feia mesmo, não deixava que os olhares dos populares se tornassem mais desconfiados, e afirmassem ser um homem com trajes femininos, a aludida senhora.
Os negociantes procuraram logo fazer com que o ajuntamento se desfizesse.
Apareceu um guarda civil que em ligeira observação achou que a senhora era mulher e não homem como o povo aglomerado na rua pensava.
O guarda convidou-a a tomar um táxi.
Ela não acedeu e resolutamente debaixo de vaias e de gritos da garotada: “É homem!…” caminhou pela travessa Flora até a esquina da rua da Carioca afim de tomar um bonde.
Quando ali estava rodeada pelo povinho que continuava a tomá-la por um representante do sexo forte, surgiu o conhecido carnavalesco Pachá, que lhe dando o braço fê-la tomar o bonde n. 502 da linha Jochey Club que então passava.
E o povinho que não ficou convencido que fosse mulher, quando o bonde seguiu largou uma forte vaia da qual dessa vez compartilhou o cavalheiro que se mostrara tão gentil com aquela esquisita dama.”
Fim da notícia.
Até tentei saber quem poderia ser a pessoa que foi pública e perversamente destratada no já muito movimentado centro do Rio de Janeiro. Não consegui. Mas descobri quem era o “cavalheiro que se mostrara tão gentil com aquela esquisita dama”.
Pachá era um personagem ativo dos carnavais cariocas, que naquele início do século XX sacudia até os edifícios já históricos do centro do Rio de Janeiro. Ainda não havia escola de samba – a primeira, a Deixa Falar, só surgiria em 1928. A folia fervia era nos clubes e nas ruas, em bailes, ranchos e blocos. Os jornais de papel destinavam largos espaços à programação carnavalesca. Anunciava-se “apoteose do amor” em “noites de indizível gozo” em bailes de carnaval.
O homem que enfrentou a horda desvairada fazia parte do Clube dos Fenianos, sociedade carnavalesca das mais célebres do Rio de Janeiro da época. Também integrava o bloco Frades do Bom Gosto e estava sempre nas rodas carnavalescas cariocas.
Pachá era um apelido comum à época. Deriva de pasha, palavra de origem turca que designava um cargo de poder no Império Otomano. Em português, passou a significar – com ironia — alguém muito rico, poderoso, que levava uma vida de opulência, ociosidade e luxúria.
O Pachá dessa história não era nada disso. Era um carioca com senso de justiça e coragem para enfrentar a turba tenebrosa, dar o braço à mulher agredida e levá-la até o bonde.
Estranhamente, depois de a senhora de chapéu pegar o bonde, Pachá entrou na onda dos demais e “compartilhou” a vaia. Pode ter sido um modo de salvar a própria pele diante da turba insana. Não importa. O gesto de acompanhar a mulher foi, em si mesmo, grandioso. E a mulher desconhecida foi ainda mais grandiosa – “resolutamente” seguiu seu caminho sob as vaias da turba enlouquecida.
Alguma coisa mudou em um século, mas não muito.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.