Brasília – O governo Lula fechou os detalhes do novo projeto de lei que vai regulamentar as plataformas digitais no Brasil, e decidiu dar à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) o papel de protagonista. O órgão, que até aqui atuava na esfera da privacidade, será turbinado com poderes para aplicar multas e até bloquear redes sociais que descumprirem ordens para remover conteúdos ilegais. A proposta, que já está em fase final no Ministério da Justiça e Segurança Pública, deve ser enviada ao Congresso nos próximos dias.
Com a decisão, o governo encerra uma disputa interna entre ministérios sobre quem seria o “xerife digital” brasileiro. A Anatel chegou a ser cogitada, assim como a criação de uma nova agência reguladora específica para o tema. Prevaleceu a ideia de ampliar a atuação da ANPD, mantendo-a como epicentro de um modelo regulatório que foca na repressão de crimes digitais sem alimentar a narrativa da extrema-direita sobre censura e “controle da opinião”.
Ao contrário do já sepultado PL das Fake News, o novo projeto evita expressões como “desinformação” ou “moderação de conteúdo”. Em vez disso, determina que as plataformas tenham um “dever de prevenção”, com obrigação de remover de forma imediata conteúdos como apologia ao terrorismo, exploração sexual infantil, incitação ao suicídio, golpes financeiros e abusos contra o consumidor.
Esse enquadramento jurídico mais técnico e menos simbólico é parte da estratégia para blindar o governo de ataques previsíveis do bolsonarismo e seus satélites, que já acusaram outras tentativas de regulação de serem tentativas “autoritárias”. A lógica agora é outra: aplicar leis já existentes, com respaldo do Judiciário, e dar à ANPD poder de ação administrativa rápida e eficaz.
A proposta não está isenta de tensões dentro do próprio Planalto. O ministro Sidônio Palmeira (Secom) defendeu que a ANPD possa bloquear redes sem decisão judicial, alegando que é preciso responder com agilidade a violações graves. Já o ministro Ricardo Lewandowski (Justiça) argumentou que qualquer medida extrema deve, sim, passar pelo crivo do Judiciário, embora reconheça a urgência de mecanismos que agilizem esse processo.
Nos bastidores, o projeto ganha tração com o apoio de Rosângela Janja da Silva, primeira-dama e entusiasta da regulação das plataformas. Janja tem se manifestado publicamente sobre os riscos que crianças e adolescentes correm nas redes sociais, reforçando o discurso do governo de que se trata de proteger os mais vulneráveis – e não cercear liberdades.
Essa proteção é justamente um dos motores do projeto. O Planalto tem sido pressionado por episódios recentes como os “desafios” perigosos que circulam entre crianças no TikTok e os casos de publicidade inadequada em vídeos voltados ao público infantil. A crise do PIX solidário, que desencadeou uma avalanche de desinformação e prejudicou a imagem do presidente, também acelerou os debates.
Pesquisas internas indicam que a maioria da população – incluindo parte do eleitorado que não aprova o governo – apoia algum tipo de controle estatal sobre o ecossistema digital. A Secretaria de Comunicação acredita que o novo projeto poderá transformar essa demanda difusa em base política, ampliando a legitimidade da proposta.
A nova lei mira, portanto, não em ideologias, mas em crimes. A ideia é equipar o Estado com ferramentas eficazes de sanção e fiscalização, sem depender exclusivamente de ações judiciais ou da boa vontade das big techs. Caso aprovado, o projeto vai inaugurar uma nova era no enfrentamento dos abusos digitais no Brasil, com a ANPD como protagonista de um modelo de regulação sob medida para o século XXI.
O Carioca esclarece
O que é a ANPD e qual será seu novo papel?
A Autoridade Nacional de Proteção de Dados é o órgão responsável por fiscalizar o uso de dados pessoais no Brasil. Com o novo projeto, a ANPD passará a fiscalizar e sancionar redes sociais e plataformas digitais que não cumprirem ordens de remoção de conteúdo ilícito, podendo até bloqueá-las.
Por que o governo decidiu não usar o termo “fake news”?
O termo foi deliberadamente evitado para fugir da guerra semântica e das acusações de censura. O projeto se foca em condutas ilícitas já tipificadas em lei, como crimes contra crianças, terrorismo e golpes virtuais, evitando termos ambíguos.
A ANPD poderá bloquear redes sem decisão judicial?
Esse é um dos pontos de debate. Parte do governo defende o bloqueio direto pela ANPD, enquanto outra ala, liderada pelo ministro da Justiça, defende que isso deve ocorrer apenas com autorização judicial – ainda que em caráter de urgência.
Como isso impacta os usuários comuns?
A proposta busca proteger principalmente os usuários mais vulneráveis, como crianças e adolescentes, e responsabilizar plataformas por conteúdos ilegais. Não há previsão de controle ou censura de opiniões legítimas.