Carmo do Rio Claro (MG) — Um padre no palco, um prefeito no púlpito e R$ 280 mil saindo do bolso do contribuinte. Foi assim que Fábio de Melo inaugurou o novo ciclo de prioridades da cidade mineira de Carmo do Rio Claro, onde metade do orçamento do hospital local foi torrada em uma apresentação religiosa sob aplausos e aleluias.
O show, realizado no último final de semana, escancarou o que já virou tendência nacional: o uso escancarado de verbas públicas para bancar eventos cristãos, em plena escalada do fundamentalismo político-religioso.
O próprio prefeito Filipe Carielo (PSD) não fez cerimônia: “A nossa meta é, pelos próximos quatro anos, realizar eventos voltados ao público cristão”. Traduzindo: quem não for da bancada de Deus pode ficar com as sobras — ou nem isso.
R$ 13,8 milhões para evangelizar
Segundo levantamento do jornal O Globo, ao menos 38 prefeituras em 16 estados gastaram mais de R$ 13,8 milhões com eventos cristãos apenas entre junho de 2024 e maio de 2025. Um tsunami de dinheiro público para bancar 27 festas evangélicas, 13 católicas e uma indefinida, muitas vezes sem licitação, com base em “inexigibilidade”. Transparência, para quê?
Os casos pipocam Brasil afora. No Maranhão, o Ministério Público tentou suspender o “Zé Doca com Cristo”, um carnaval gospel de R$ 600 mil. No Rio Grande do Norte, a recomendação era evitar esse tipo de gasto — ignorada, é claro. Em Campestre de Goiás, a farra com Jesus levou embora metade da arrecadação do IPTU anual da cidade.
Rio de Janeiro: capital da fé bancada
No Rio, o caso é ainda mais escandaloso. A Marcha para Jesus, que em 2010 gerou multa ao então prefeito de Teresópolis, hoje recebe cifras milionárias com louvor. Só em 2025, a prefeitura carioca despejou R$ 1,9 milhão no evento. E não para por aí: a Expo Cristã levou R$ 3 milhões e o “Cariocão”, promovido pela Igreja Adventista, abocanhou mais um quinhão.
A gastança gerou uma representação no Ministério Público Federal contra Eduardo Paes, por suspeita de favorecimento ao público evangélico. A pergunta que ecoa nas igrejas e nos tribunais é simples: qual a linha entre fé e favorecimento?
Cultura ou proselitismo?
Os prefeitos adoram se esconder atrás do argumento da “tradição cultural”. Mas até onde vai a cultura e começa o proselitismo financiado com dinheiro público?
Rodrigo Vittorino, professor da Universidade Federal de Uberlândia, resume bem o dilema: “Patrocinar proselitismo é inaceitável, mas há festas tradicionais que sempre receberam apoio”. A zona cinzenta virou um breu conveniente para gestores que buscam agradar bancadas religiosas e garantir capital político barato.
A prefeitura de Carmo do Rio Claro, por exemplo, se defendeu com o clássico: “O Estado, embora laico, não é antirreligioso”. E arrematou: “É legítimo fomentar atividades que contribuam para a formação cultural e espiritual da sociedade”. Espiritual, tudo bem. Mas e o hospital, prefeito?
Fartura para uns, repressão para outros
O problema não é só o dinheiro — é a desigualdade religiosa institucionalizada. Para o cientista político Vinicius do Valle, do Observatório dos Evangélicos, o que vemos é uma seletividade perversa: “Religiões de matriz africana são frequentemente reprimidas”. Enquanto igrejas evangélicas e católicas ocupam palcos, ruas e cofres, terreiros continuam sendo alvo de racismo, intolerância e abandono estatal.
Esse uso seletivo e estratégico de verba pública para eventos religiosos escancara uma pergunta incômoda: o Estado é laico só no papel?
O Carioca esclarece
Quem é Padre Fábio de Melo e por que seu show causou polêmica?
Fábio de Melo é um padre católico midiático. Seu show custou R$ 280 mil de dinheiro público e simboliza o avanço do uso político da fé.
Por que o uso de verbas públicas em eventos religiosos é problemático?
Porque compromete a laicidade do Estado, privilegia grupos religiosos específicos e ignora prioridades sociais, como saúde e educação.
Qual o impacto desse tipo de gasto para a democracia?
Cria um Estado enviesado, que privilegia determinadas crenças e ignora a pluralidade religiosa, enfraquecendo direitos civis e igualdade.
Como a sociedade pode reagir?
Com fiscalização, denúncia e pressão política. O dinheiro público deve servir ao bem comum, não à propaganda de púlpito.