Depois de versos em ‘Aracnídeo’, Vandal diz que rap nacional é ‘medroso’

Dias após ter monopolizado as discussões do rap com sua voz e barras em “Aracnídeo”, o rapper Vandal reflete o que foi comentado após seu diálogo com a obra de Sabotage (1973-2003), uma análise crítica e pessimista sobre o rap comercial brasileiro, incluída em forma de música no álbum “Sabotage 50”, homenagem póstuma ao aniversário de 50 anos do rapper paulistano.

Parceira com Russo Passapusso, do BaianSystem, e o produtor Tejo Damasceno,  “Aracnídeo” tomou de assalto as discussões, levando a obra a ser protagonista por causa das palavras do rapper baiano. Em entrevista à Billboard Brasil, ele falou sobre a repercussão, criticou Don L e sobre os tempos de “linha de frente” nas ruas da Cidade Nova.

Como foi acompanhar a repercussão de “Aracnídeo”?

A cidade toda reagiu, né? Porque a gente sabe o quão é difícil estar dentro desses espaços, principalmente artistas com o perfil que eu tenho. Existe toda uma gama de artista que se assemelha a mim e me acompanham. Eles, de certa forma, não conseguem ter esse tipo de penetração. E aí, quando eu consigo, acontece meio que um clamor dentro do do processo todo. É realmente um questionamento amplo.

aOs artistas vivem com medo. Medo do cancelamento, medo da exposição, medo do que é bonito, do que é feio, medo de ser mal interpretado.

Você não tem nenhum desses medos?

Eu acho que o ser humano é falho, cheio de contradição.  Mas acabo me sobressaindo justamente por ser quem eu sou. Hoje em dia, a internet faz com que os assuntos sejam tão banais que é até difícil você misturar o que o povo entende que é um erro ou não é. Uma pessoa pode ser racista e, no dia seguinte, ela pode vir a ser aclamada. Mas eu sou contra a palavra cancelamento porque eu venho de uma realidade de periferia. E quem cancela as pessoas são policiais. “CPF cancelado”. Não compacto com isso. Por isso, acredito que o meu papel é continuar sendo verdadeiro independente do que acontecer daqui para frente. A única coisa que não consegue ser tirada de você é a sua verdade e quem você é dentro disso.

A repercussão gerou muito em torno, também, sobre quem é o melhor ou o pior rapper. 

Eu acredito que as bagagens dos jovens hoje em dia estão mais superficiais no quesito rodagem. Hoje em dia até informação séria vira um meme. Alguém posta que alguém morreu e, pô, já tem 10 pessoas que postam embaixo com um meme e a foto é de um corpo morto. Antigamente, a gente tinha que velar um corpo, tinha que abraçar. O entendimento de vida era outro. Tem um cemitério dentro do meu próprio bairro, na Cidade Nova, que é o bairro de onde eu venho. Tem até um verso na música com o Funkeiro e o Gasper [Criminologia, de 2019] que eu falo “R.I.P All Day” [“aqui jaz todos os dias”, em português].

Você retuitou, criticamente, uma publicação na qual o Don L afirmava ser o melhor rapper do país.

O próprio Don L, sendo nordestino, não me colocou em pauta. Ele se colocou em pauta. Ele puxou pra ele. Então, eu também tenho que ter essa certeza: eles não vão fazer nada por mim. E minha comunicação também não é com eles, eu sei o que esperar deles. Minha comunicação é com o público.

É questão de postura. Eu poderia pegar esses dias virais e tentar polemizar mais ainda, atacar outros MCs, citar nomes, fazer disso um inferno propício a mim mesmo. Mais likes, mais seguidores…

Eu li aquele tuíte sobre o Don L, mas eu gosto de deixar as pessoas falarem. Repostei porque era uma reflexão feita por outra pessoa, ainda que levantada por mim. Foi uma forma de dizer que a discussão tava sendo levantada. E as pessoas perceberam que os próprios artistas jamais me dariam esse palanque porque sabem do potencial que eu tenho.

Muitos comentários pareciam obcecados com a letra. Mas tem um instrumento em “Aracnídeo” que é a sua voz. De onde vem sua forma de cantar?

Importante você falar isso porque eu sofro no dia-a-dia. Eu tenho um timbre de voz mais encorpado, né? E até no meu falar, às vezes, quando eu mando um áudio para alguma pessoa, ela diz “calma!”, sabe? Como se seu estivesse brigando com ela. A maioria dos MCs daqui, os mais antigos, já estavam na rua, no soundsystem, no palco. Não tinha tempo de pegar o microfone e usar autotune. Era uma guerra! Se o DJ fizesse o rewind, você perdia sua vez! Então minha voz traz essa urgência e, também, as influências do rock, do Sepultura com Carlinhos Brown ali em “Roots”. Quando eu começava a cantar, as pessoas odiavam, diziam “sai daí”. Bebi no samba-reggae, no jungle, eu sou “olodunico” nato, minha construção é do Olodum. Então peguei o samba-reggae e misturei com essa minha agressividade. Até quando encontrei o drill de Chicago onde os artistas deixavam o beat passar, era menos de encaixe, mais de urgência de quem tava narrando crime, assassinato. O que eu faço é o drill de Chicago, com samba-reggae, com o que acontece em Londres, com os jamaicanos, com o Vybz Kartel…  Minha forma é urgente, não técnica.

Você acha que a urgência do que você canta te afasta dos círculos mais comerciais?

O Russo [Passapusso, MC do BaianaSystem] sempre fala comigo: “os caras vão ter 10 carros e a gente vai ter um, mas o nosso vai ser mais interessante”. O local em que vamos estar será diferente. A gente vive em modais, né? Tudo é massificado, tem o Tik Tok, o Instagram. As entregas são feitas de um jeito onde tudo é seguir uma determinada engrenagem. Quando eu fiz o “TIPOHLASVEGAS”,  sofri represálias pela forma de rimar, pelos instrumental. Isso me freiou. Mas, ao mesmo tempo, me colocou em um hall em que eu queria estar, no hall de artistas pensantes e criativos. Eu sei que ele [o álbum de 2015] estava à frente e que, agora, ele vai ser revisitado. Eu sei que, com meu próximo disco, “VANGUARDA”, esse fio de coragem que eu tenho, de beber em instrumentais diferentes, sem medo, vão me colocar em um lugar de destaque. Se eu quiser eu faço um disco de trap, faço 10, 20 músicas. Mas eu não quero fazer uma entrega superficial dessa. Quero que minha obra faça os outros artistas se livrarem das amarras e venham junto comigo nesse movimento.

Como foi perceber que você se tornou a referência para os artistas que são considerados referência pelo público?

Eu acho que isso aconteceu porque eles sabem eu sou o único que não… [Vandal dá uma pausa na fala]. Eu nem gosto de falar nessa coisa de “não me vendi”. Porque a venda é diária, né? Levantou da cama, botou uma roupa, passou uma fragancia no seu corpo… É um tipo de venda. Então, não quero ser hipócrita de falar isso. Mas eu costumo dizer que eles veem que eu me mantenho verdadeiro. As pessoas veem que eu não me entreguei a uma soberba mesmo depois de tudo o que eu fiz, dos lances com o BaianaSystem, de um Lollapalooza… E eu sinto que os artistas veem isso porque ouvem o meu disco e de alguma forma entendem quem é esse cara que faz grime, faz drill e que, ao mesmo tempo, não canta com autotune, algo inconcebível hoje. Mas muitos ainda tem medo de comprar o que o Vandal é. Tanto é que eu tenho dois, três feats.

As pessoas não querem estar com você e bancar suas palavras porque isso gera prejuízos?

É isso. Afasta. Eu não sou o cara que vai fazer as palhaçadas que eles fazem. Eu não vou aceitar e não ouvir coisas quieto. Eu tenho poder de argumentação, bato no peito, não vou abaixar a cabeça para historinha. Tem coisas que os caras fazem que eu não compactuo. Então saio como persona non grata, chato.

Quem são os “Vandal” do Vandal?

Os ladrões antigos, né? Os traficantes antigos, meus parentes antigos, a Irmã Dulce, pela história dela dentro da cidade, tudo que ela criou, esse milagre palpável que é a obra dela… E minha avó.

Ela é viva ainda?

Não, não. Eu perdi minha vó. Foi a maior dor da minha vida. Eu ainda não consegui digerir isso. Já tem mais de três anos que eu perdi, mas parece que foi ontem. Eu fui um menino criado por vó. Ela foi minha parceira dentro da história. Eu lavava roupa com ela, aprendi a fazer tudo o que eu faço com ela. Ela vivia trabalhando em outras casas e até minhas referências de moda vem dela, já que ela lavava pra fora, para pessoas abastadas. E a gente ia lá, buscava as roupas e eu fui tendo acesso às roupas de marca. Comecei a ver Lacoste, Tommy, Valentino…

E eu lavava essas roupas e ficava na frente do espelho, experimentando aquelas peças maiores que eu. Eu passo roupa perfeitamente porque eu era o parceiro dela nessa história. E também vivia as dores com ela. Minha avó tinha que lavar alguns meses de graça para poder pagar o que foi danificado. Às vezes, as coisas sumiam do varal… Qualquer dano causado, os proprietários tinham uma soberba surreal e faziam com quem ela pagasse isso.

Como era a sua relação com ela, na época desse Vandal “linha de frente”? 

Ela foi a minha parceira também quando eu entrei nesse mundo de crime. Eu reneguei todo mundo, né? Eu coloquei na minha cabeça que eu não queria mais ninguém. Eu não tinha mais amor por nada, nem por ninguém. Era só por ela. Então, minha avó foi minha última parceira e eu ainda não consegui superar que eu não tenho mais ela — a única pessoa por quem eu realmente voltava. Hoje em dia, eu tenho que voltar para qualquer pessoa, mas eu volto com satisfações. Até para minha própria mãe, né? Sou um homem adulto, eu tenho que voltar para ela com satisfação. Minha vó, não, só o que eu fazia era botar a cabeça no colo dela e chorar. Hoje eu não tenho mais ninguém.

Que valores que o tempo de frente na Cidade Nova te trouxe?

Eu acho que… Eu acho não, eu tenho certeza que o que me moldou nessa vida criminal foi saber o que era honra, o que era a palavra… Você sabe que você não pode errar. Antigamente você não podia errar. Me fez ter essa contundência e ter essa cabeça erguida. As pessoas passam a entender que você não se ajoelha. “Pô, Vandal, se você colasse com fulano, beltrano, siclano, estaria melhor de vida, de acesso, de Ibope…”. Mas todo esse fio de vida que eu tive me moldou e fez quem sou hoje. Me fez não errar e, por isso, me fez estar vivo.

Com quantos anos você começou a refletir sobre essa dualidade?

Rapaz… Esse contexto de idade sempre foi um pulo. Eu nunca cataloguei. Tanto que eu nem falo sobre idade, nem sobrenome, nem sobre nada. Porque as coisas na minha vida foram acontecendo muito misturada. Eu não tenho épocas de “foi aquilo” ou “foi isso”. Teve épocas que “foi tudo”! Eu sempre estive mergulhado de forma apaixonada e macro em tudo. A linha histórica eu perdi. Não tive como catalogar porque eu vivi tudo de forma intensa. Não, eu já estava ali em tudo. Tudo foi acontecendo. Eu já acordava para ver e viver tudo.

Por isso, eu não consigo rimar sobre uma coisa só. Eu jogo um universo dentro disso. Pode até ser uma falha minha. Eu poderia ser mais técnico nesse mundo do hip hop. Mas eu não tive tempo.

Houve quem destacasse que a frase “favela venceu”, presente nos versos de BK em “Mun Rá” no álbum “Sabotage 50” em comparação com a profundidade dos versos seus em “Aracnídeo”. Como você viu isso?

No grafite surgiu a palavra “efêmero”. Todo mundo utilizava, era uma febre, tudo era “efêmero”. Assim foi com o “favela venceu”. E realmente aconteceu essa passagem, né? A gente saiu de uma condição precária, muitos amigos conseguiram comprar suas motos. Antigamente, o sonho da gente era ter um tênis. As pessoas te matavam por um tênis. Depois, começaram a usar as roupas que as pessoas que tinham mais dinheiro usavam. Teve o “boom” do financiamento, o pessoal começou a entender que poderia também ter um carrinho. De uma certa forma, foi uma vitória. Mas a gente sabe que não foi algo coletivo, que foi algo muito pontual.

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