Câncer de mama: tabu e preconceito ameaçam prevenção de pessoas trans

O preconceito e a exclusão, presentes em vários aspectos da vida de pessoas trans, afetam também os cuidados de saúde relacionados ao câncer de mama.

O atendimento prestado aos homens e mulheres que passaram por transição de gênero – com o uso de hormônios e cirurgias de redesignação – está longe de naturalizar os novos corpos, o que acaba afastando o grupo de exames preventivos. A falta de informação sobre os riscos de câncer de mama em pessoas trans também dificulta diagnósticos precoces.

“O preconceito diminui as chances de as pessoas trans terem um atendimento médico digno e, consequentemente, atrapalham o acesso aos tratamentos e a diagnósticos no tempo adequado”, explica a mastologista Maria Júlia Calas, da Oncologia da Rede D’Or e presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM) – Regional Rio de Janeiro.

Ela é autora de uma revisão de investigações anteriores sobre o tema publicada na revista científica Mastology. Entre os 38 estudos avaliados pela autora, 28 apontavam para a baixa frequência de exames preventivos dentro da comunidade LGBTQIAPN+.

 

Em entrevista ao Metrópoles, a mastologista Maria Júlia Calas alerta que as pessoas trans continuam excluídas do acesso às consultas e sem as informações de conscientização sobre o risco do câncer. Médicos e os profissionais de saúde seguem despreparados para fazer o atendimento correto.

Segundo ela, muitas vezes as pessoas trans são tratados por seu nome ou gênero morto (a forma que eram conhecidas antes da transição) por profissionais de saúde, além de serem associadas preconceituosamente a condutas sexuais promíscuas ou a comportamentos de adesão ao uso de drogas. Garantido pela Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, o tratamento pelo nome social segue sendo desrespeitado.

“O debate sobre o câncer em geral e, especialmente o de mama, entre pessoas trans é um assunto quase invisível na comunidade médica. Temos que formar profissionais orientados a lidar com as especificidades do atendimento a esses indivíduos”, aponta a especialista.

A comunidade médica suspeita que o uso de hormônios para a afirmação de gênero também eleve o risco de cânceres hormônio-dependentes, como são os tumores de mama. Porém, a hipótese ainda não foi confirmada justamente pela escassez de estudos.

Câncer de mama em mulheres trans

Entre as poucas pesquisas sobre o assunto, se destaca um levantamento holandês publicado em 2019. O estudo acompanhou os exames de mamografia de 2.260 mulheres trans (pessoas que tiveram o sexo masculino atribuído no nascimento, mas se identificam com a identidade feminina) por 33 anos e 1.229 homens trans (identidade contrária) por 15 anos.

Foram identificados 15 casos de câncer de mama em mulheres trans, uma incidência de cerca de 30% menor do que a registrada em mulheres cisgêneros, mas 46 vezes maior do que em homens cis e trans. A maioria dos tumores era do tipo que se alimenta de estrogênio e progesterona, hormônios femininos que fazem parte do protocolo de transição.

“Não sabemos quanto tempo esses hormônios podem ser usados com segurança, nem quais são as dosagens menos arriscadas. Para isso, é preciso realizar estudos, o que não tem sido feito na proporção ideal para acompanhar as transformações da sociedade”, completa a mastologista.


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Riscos em homens trans

Os homens trans, por sua vez, tiveram um risco reduzido de desenvolver câncer de mama se comparados com mulheres cisgênero e trans. Entre o grupo analisado pela pesquisa holandesa, apenas quatro casos foram registrados.

“Os homens trans usam testosterona, um hormônio que muda a textura da mama e pode ser uma proteção ao câncer, mas essa teoria ainda não está comprovada na literatura médica. Os indivíduos que optam por remover as mamas, estes sim, acabam fazendo uma espécie de prevenção ao retirar as glândulas mamárias”, explica Maria Júlia.

A mastectomia, no entanto, não anula totalmente os riscos de desenvolver o câncer, especialmente se o homem trans tiver histórico genético que facilite o desenvolvimento de tumores. A neoplasia não aparece apenas na mama, por baixo das axilas, tecido onde também há glândulas que são preservadas pela cirurgia.

Outros fatores de risco

As associações se preocupam em alertar sobre os riscos de saúde relacionados ao uso de hormônios. O Grupo Gay da Bahia (GGB), uma das organizações pelo direito das minorias mais longevas do Brasil, sempre orientou as mulheres trans a investigarem a saúde das mamas, mas o câncer não era o foco.

“Sabemos que muitas meninas sofrem problemas com seus silicones, que escorrem ou descem, por exemplo. Saber do risco de câncer é um motivo a mais para fazer o acompanhamento”, afirma o ativista Marcelo Cerqueira, presidente do GGB.

 

Dificuldade no acompanhamento

Tanto homens como mulheres trans são aconselhados a acompanhar a saúde das mamas.

Em homens trans que não fizeram a mastectomia, o cuidado deve ser o mesmo de mulheres cis: realizar ao menos uma mamografia por ano a partir dos 40 anos de idade. Mulheres trans (com ou sem prótese mamária) devem fazer mamografias periódicas na mesma frequência, caso tenham feito uso de hormônios femininos por mais de cinco anos.

“Esse acompanhamento é fundamental, mas infelizmente, vivemos uma realidade em que não existe o acolhimento necessário para que seja realizado o exame. Não estou falando só de um caso de pessoas atendidas no SUS ou de uma determinada região do Brasil: globalmente, não estamos preparados para lidar com essa população, seja na forma de falar, orientar, acolher e até realizar o exame”, alerta a médica.

Maria Júlia Calas lista as melhores condutas que um profissional de saúde deve ter para atender a população trans com respeito:

  • Chamar o paciente pelo nome e pronome desejado;
  • Acolher e tratá-lo com respeito e dignidade;
  • Conscientizar o paciente sobre os riscos de doenças, como o câncer;
  • Incentivar o acompanhamento periódico de saúde.

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