Cada dia como mais um dia (Por Miguel Esteves Cardoso)

O pior conselho que me deram foi pôr sempre “talvez” antes de uma afirmação – porque pode não ser verdade e pode haver quem discorde.

O propósito de escrever não é que concordem connosco: é que leiam o que escrevemos.

O resto é acessório.

Se ficaram a pensar, se acharam graça, ou se concordam ou discordam – isso já é secundário e já não é connosco.

Ia eu escrever “talvez o pior conselho de sempre é viver cada dia como se fosse o último”.

Talvez porquê? Porque não tenho a certeza? Mas desde quando é que é preciso ter a certeza para dizer qualquer coisa?

O pior conselho de sempre é “vive cada dia como se fosse o último”.

Ou cada Verão, considerando que há sempre um último Verão e nós só raramente sabemos qual é.

Viver cada dia como se fosse o primeiro também é um mau conselho, não só porque é impossível de seguir, mas porque os primeiros dias não são particularmente bons – se é que nos lembramos deles.

Já deve haver um azulejo ou cartaz a parecer bordado, que combina os dois maus conselhos num único ainda pior: “Vive cada dia como se fosse o primeiro e o último.”

Nos muitos anos que tenho dedicado ao assunto, ocasionalmente incentivado por um susto ou dois, cheguei à conclusão de que a melhor maneira de viver é – surprise, surprise! – a mais difícil de todas: é viver distraído, e distraidamente.

Distrai-se bem quem não pensa em durações e longevidades, em probabilidades de repetição e de segundas oportunidades, em renascenças e remodelações.

Quem vive cada dia como se fosse o último vive na exuberância do desespero, e na vã tentativa de conquistar a angústia através do exagero forçado da actividade.

Digam o que disserem, o não ter nada para perder confunde-se muito com o estar à beira de perder tudo.

Viver distraidamente é pensar em tudo menos na vida.

Há um bom teste para detectar quem vive assim: quando se diz a um felizardo que não se esqueça de que vai morrer, ele fica triste.

E diz, até, que nunca tinha pensado nisso. Abrir portas onde se erguem muros.

(Transcrito do PÚBLICO)

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