De nada servirão as palavras bonitas (Por António Rodrigues)

O último Monitor de Pluralismo dos Meios de Comunicação Social devia deixar-nos a todos apreensivos, sobretudo aos dirigentes políticos e económicos que enchem a boca com palavras bonitas sobre o papel essencial que o jornalismo desempenha na saúde das democracias. A julgar pelos resultados, de 32 países europeus (os 27 da UE mais Albânia, Macedónia, Montenegro, Sérvia e Turquia), apenas quatro oferecem boas condições aos jornalistas: Alemanha, Dinamarca, Irlanda e Suécia.

“As más condições de trabalho dos jornalistas, as ameaças físicas e online à sua segurança e o aumento das acções judiciais estratégicas contra a participação pública (SLAPP) continuam a ser problemas fundamentais que exigem soluções sistemáticas”, dizia o estudo do Centre for Media Pluralism and Media Freedom. Sendo as SLAPP acções judiciais que visam censurar, intimidar e silenciar os críticos, de modo a sobrecarregá-los com custas judiciais até que se calem.

Num continente europeu que se vangloria da sua liberdade de expressão e de imprensa ter somente quatro países que dão boas condições aos jornalistas demonstra que muitos governos não aliam as palavras aos actos. Como escreve esta semana Renate Schroeder, directora da Federação Europeia de Jornalistas (que representa 73 sindicatos em 45 países), “todos os que defendem a democracia” devem apoiar “os jornalistas e o jornalismo holístico como um bem público”, porque foram poucos os momentos da história em que “a informação rigorosa tenha sido mais importante” do que agora.

A representante dos jornalistas defende uma aliança alargada de “leitores, ouvintes, organizações e sindicatos de jornais e académicos” que convença os decisores políticos a agir e ligar a acção às palavras bonitas, de modo a garantir a sobrevivência dos media e à sua manutenção como um verdadeiro contrapoder e não o actual modelo erodido.

Esta semana, dia de super-terça de eleições primárias nos Estados Unidos, este ano com menor interesse por os candidatos à presidência dos dois principais partidos já estarem mais do que escolhidos, com Joe Biden e Donald Trump a reeditarem o duelo de 2020, jornalistas do Marketplace Morning Report andaram pelos “desertos noticiosos” nos estados norte-americanos que iam a votos.

Estes desertos de proximidade são cidades e regiões onde deixou de haver imprensa local e, como tal, os eleitos deixaram de ver as suas decisões escrutinadas, o que impede os eleitores de tomarem decisões informadas sobre os seus eleitos. Como conta Keith Stickley, proprietário das Shenandoah Publications, no vale de Shenandoah, no estado da Virgínia, que teve de fechar por razões económicas o jornal The Free Press que fundara, “um dos supervisores do condado disse, depois de fecharmos o jornal, que o nosso encerramento tinha sido a melhor coisa que podia acontecer ao condado”.

O declínio da imprensa local nos EUA foi tão grande em 2023 que é provável que no final deste ano o país tenha perdido um terço dos jornais existentes em 2005, passando de 8891 para cerca de 6000, de acordo com um estudo do ano passado da Medill School of Journalism, Media, Integrated Marketing Communications da Northwestern University, citado pela Axios.

Para os autores, estamos perante “uma crise de grande alcance” para a democracia americana, que “se debate simultaneamente com a polarização política, a falta de participação cívica e a proliferação de desinformação e informação online”.

“Há milhões de teorias da conspiração geradas na Internet e não há editores”, afirma Stickley, logo, sem “responsabilização”, precisamente aquilo que se exige aos jornais e jornalistas.

Para a extrema-direita, o jornalismo ou é propaganda ou inimigo. A ideia de uma imprensa livre com capacidade crítica e liberdade de expressão choca com a sua percepção da sociedade. O que se passou com o encerramento da maior agência de notícias da América Latina (e segunda mais importante em língua espanhola a seguir à Efe), a argentina Telam, pelo Governo de Javier Milei é mais um exemplo disso. Para o Presidente argentino, como a agência de notícias não está com ele, está contra ele, logo faz “propaganda kirchnerista”, em referência ao nome da antiga Presidente e vicepresidente Cristina Fernández de Kirchner.

Quando o porta-voz presidencial, Manuel Adorni, publica no Twitter a mensagem “Digam adeus à Telam, que vai embora”, não só reduz a discussão sobre os media e a liberdade de informação ao nível da chacota, como empresta à decisão do Governo um tom de “crueldade” e falta de empatia pelo destino dos 755 trabalhadores da agência pública de informação.

Sem qualquer respeito pelos 79 anos da agência, pelo seu papel informativo relevante e à margem de qualquer critério económico – de acordo com informação da agência, o peso das remunerações no total das despesas passou de 68,27% em Dezembro de 2019 para 22,29% em Agosto de 2023. Só na Argentina, a Telam servia cerca de meio milhar de notícias diárias aos 803 órgãos do país que assinavam o seu serviço.

“Podemos discutir a eficiência da Telam. Discutir como é composta, como se administra e todos vamos ter esta ou aquela posição”, dizia o escritor e professor Martín Kohan à rádio Futurock, citado pelo diário Página/12. “Mas o que se passou é o regozijo com o ultraje, com o sofrimento dos outros. Há alguém que se regozija, porque se diverte com os danos que está a causar.” Para Kohan, isto demonstra que “a crueldade está na moda na Argentina, parece bem, cai bem”.

Quando as mensagens se repetem seis vezes mais depressa que os factos e “uma pessoa é 73 vezes mais susceptível de retweetar uma mentira que um facto real”, como refere a prémio Nobel da Paz de 2021, Maria Ressa, percebemos que se para um jornalista com todas as condições de trabalho asseguradas e total liberdade já seria uma batalha difícil lutar contra a disseminação da falsidade, nas condições precárias em que a maioria dos media vivem hoje, é uma luta quase inglória.

Em entrevista ao jornal belga L’Echo, a jornalista filipina fala em 2024 como o “ano crucial” para o jornalismo e a democracia, tendo em conta as inúmeras eleições agendadas para este ano que culminam na nova batalha entre Joe Biden e Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos em Novembro.

“Este é um momento crucial porque os resultados vão alterar o equilíbrio de poder num mundo caótico”, afirma a directora do jornal online Rappler. E garante não estar a ser muito sombria: “Receio que seja essa a realidade. Segundo a V-Dem, uma ONG sueca, 72% da população mundial vive baixo um regime autoritário. Portanto, voltámos ao ponto em que estávamos em 1986.”

Com as redes sociais transformadas nos maiores distribuidores de informação do mundo e as mentiras, o ódio e o medo a espalharem-se a velocidade vertiginosa, como pode o jornalismo com os pés assentes no chão fazer voar a sua informação assente em factos à mesma velocidade? Como pode a democracia sobreviver se a nossa vontade como cidadãos está a ser condicionada por essa disseminação de falsidade?

Maria Ressa ainda acredita na resistência, desde que possamos manter o nosso livre arbítrio. “A Polónia e Taiwan são pontos luminosos e mostram que é possível. Continuo a acreditar que os seres humanos são fundamentalmente bons.”

(Transcrito do PÚBLICO)

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