A vida como ela é (Gustavo Krause)

Não me passa pela cabeça a tentativa, ousada e minúscula, de abordar a grandeza da obra de Nelson Rodrigues. Anjo ou demônio, autêntico ou canalha, amado ou odiado, Nelson provocou os mais contraditórios sentimentos. No entanto, impossível negar o reconhecimento do genial talento dramaturgo, escritor e colunista do jornal Última Hora, (1950/1961), retratando em curtas narrativas o cotidiano de pessoas comuns, entre os anos 1950/61, sob o título A vida como ela é.

Com o olhar iluminado, o autor atravessava as fronteiras do bem e do mal, conteúdos da natureza humana, descrevendo o que é, sem juízo de valor para o que deveria ser. No conjunto, a obra de Nelson Rodrigues provoca no leitor um choque de realidade e o impacto da autorreflexão para quem se imagina um privilegiado habitante das nuvens.

Tomo o título por empréstimo para constatar a falsa sensação dos que se acham “bem-sucedidos”, seguindo a métrica das fatias de poder e riqueza, com destaque para os que se aventuram no espaço da Política.

Quando abraçamos a Política, a autêntica vocação do realismo aconselha superar os delírios da ilusão. Não à toa, há uma preventiva e consagrada lição atribuída a vários autores: “a ilusão eleitoral é mais forte do que a ilusão amorosa”.

De fato, as vitórias eleitorais e as conquistas de poder elevam o ego dos vencedores às alturas estratosféricas, impulsionado pelo mais venenoso dos combustíveis, a vaidade, talvez, o único pecado insaciável: quanto mais alimentado mais voraz é o apetite. É uma dura peleja entre as nossas vozes interiores para enfrentar o desastre do abismo.

Apesar dos defeitos e das reiteradas ameaças autoritárias, somente o ambiente da democracia representativa valoriza a prudência, a moderação e a solidariedade no exercício do poder, assegurando a primazia das instituições e o império das leis na alternância do poder.

De outra parte, a dinâmica do regime aproxima o mundo das abstrações e promessas, do mundo real onde se manifestam desafios e dificuldades do cotidiano das pessoas.

No caso brasileiro, o calendário eleitoral alterna eleições gerais (Presidente, Governadores, Parlamentares – Senadores e Deputados, em 2022/2026) e em meio aos mandatos federais, eleições locais (Prefeitos, Vereadores, em 2024/2028).

Com a habitual competência, afirma o Professor Antonio Lavareda: “A grande proximidade entre eleitores e candidatos nas municipalidades favorece o compartilhamento de valores e atitudes políticas, aferindo-se a partir deles o peso dos humores sobre o destino das próximas eleições gerais” (De Bolsonaro a Lula III – Pesquisa, eleição, democracia e governabilidade. Salvador, BA: Sagga Editora e Comunicação, 2023, P. 32)

Vale dizer, nas eleições locais, Brasilia, a superestrutura política se encontra, com o Brasil real onde a necessidade tem cara de gente. Não é um dado estatístico,

Com a experiência de transitar pelas três esferas de poder da Federação, cabe destacar que, como Prefeito e Vereador, defrontei-me, frequentemente, com a vida como ela é, em momentos inesquecíveis.

Num deles, na periferia da zona norte do Recife, uma humilde senhora pegou-me pelo braço e disse: “Prefeito, este enorme buraco é um depósito de lixo e doenças (morava nas encostas do morro no Vasco da Gama), faça a praça, o jardim e as escadarias”. Receoso de prometer e não poder cumprir, respondi: “Não vou prometer, minha senhora, é muito caro, mas vou ver quanto custa”. “Caro? E o sinhô não faz ´viadute´?. Um choque de realidade. A Praça e o Jardim do Vasco da Gama foram construídos. A lição: não são os recursos financeiros que limitam as decisões política; são as decisões políticas que geram os recursos financeiros.

De outra feita, no Alto Da Esperança, inspecionando obras de urbanização, fui abordado por uma moradora, que registrou os benefícios, mas fez uma procedente ponderação: “Prefeito, o Alto tá melhorando, canaleta, muro de arrimo, escadaria, mas olhe, são muitos degraus e, como o sinhô pode ver, tenho muitas varizes. Não dá para esticar e diminuir tanto degrau”? Chamei o engenheiro e indaguei “a sugestão dela é fazer uma escadaria rampada, pode?”. “Pode, mas vai ficar mais caro”. Incontinenti, mandei executar. Ela era quem, diariamente, usava e sofria com a escadaria.

Por fim, numa reunião com o Conselho de Moradores de Nova Descoberta, prestando contas das ações da prefeitura, animado, anunciei: “vai ser instalado aqui no bairro um estabelecimento da COBAL (Companhia Brasileira de Alimentos, antiga estatal federal)”. Silêncio. Nem uma palminha. Um antigo morador do bairro, pediu a palavras e explicou: “Prefeito, vai ser problema. Sabe por quê? Não vende fiado, a retalho e não tem a caderneta do fiado. E se desse certo ia acabar com as vendas (mercearias) do bairro que a gente confia e que confia na gente”. Uma goleada de sabedoria.

Moral das histórias: PIB é emprego e mais renda no bolso do trabalhador; Meta de inflação é a feira (cesta básica mais barata) e mais comida no prato; Redução das Desigualdades é ter onde morar com água limpa para usar (saneamento básico), escola para estudar, posto de saúde atendendo, transporte barato funcionando.

Segurança? É mais que uma prioridade de governo: é o elemento constitutivo do Estado com a força legítima, capaz de assegurar a paz social.

 

Gustavo Krause foi ministro da Fazenda

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