Brasil, a terra do nunca (por Mary Zaidan) 

O governo Lula liberou mais de R$ 900 milhões  – R$ 513 milhões extra-orçamento e outros R$ 400 milhões via BNDES – para combater os incêndios que impactam 60% do país, consumindo parte da Amazônia, do Pantanal e do Cerrado. Antes tarde do que nunca. O problema é que no Brasil tudo é tardio e, mesmo quando as “emergências” são previamente anunciadas, as ações beiram o nunca. Vale para o fogo e a seca, para chuvas torrenciais. Não existem planos A, B, nem com qualquer letra, só corre-corre e improviso. Nem agora, nem em governo algum.

A urgência governamental induzida pelo ministro do STF Flávio Dino, que, bancando o chefe-maior do Executivo, primeiro puxou a orelha de Lula e dias depois autorizou gastos extraordinários, em uma coreografia que parece ter sido bem ensaiada, atiçou a República. Sobrevoo do presidente a áreas devastadas, reuniões entre os três poderes e de governadores, decreto e medida provisória. Ao fim e ao cabo, o dinheiro liberado agora só deverá chegar na ponta depois das chuvas. E o arrocho nas punições a ateadores de fogo previsto no decreto assinado por Lula na sexta-feira corre o risco de ter o mesmo destino das leis em vigor, que existem para não serem cumpridas.

Sob Lula, o desmatamento amazônico despencou 63% em 2023,  mas as multas, embora tenham crescido mais de 200%, não tiveram um único centavo arrecadado. Dados do Ibama apontam que entre 2019 e 2022 foram aplicadas R$ 50 milhões em multas ambientais só no estado do Amazonas, e todas, absolutamente todas, prescreveram. No Acre, outros R$ 24 milhões em multas jamais foram executados. Isso porque a legislação prevê que infrações ambientais – pasmem –  prescrevem em três anos quando não há procedimentos de apuração. Basta um corpo mole da investigação que nada acontece. E, como se vê, não acontece mesmo.

Pior: quem agride o ambiente, desmata e queima, continua recebendo crédito rural, com juros de pai para filho. Levantamento realizado pelo Greenpeace aponta que 2.261 propriedades rurais beneficiadas com empréstimos oficiais estão sob embargo ambiental, sendo o Banco do Brasil o maior financiador, seguido pelos Bancos da Amazônia e do Nordeste – todas instituições públicas.

Há pouco mais de dois anos, o ex Jair Bolsonaro disse que a floresta amazônica não pegava fogo. À época, queria se livrar das críticas pelo desastre ambiental patrocinado pelo seu governo. Estava certo na frase – a floresta úmida não incendeia -, mas sob a sua proteção o desmatamento cresceu 150%, criando corredores secos na mata úmida, tornando-a mais suscetível ao fogo.

Para domesticar e manter o agronegócio no cabresto, Bolsonaro alardeava ter reduzido as “multagens (sic)  ambientais em 80%”; não havia aberto concursos para o Ibama e o ICMBio, e tinha revogado, com orgulho, mais de cinco mil normas reguladoras ambientais. Eram as porteiras abertas para a boiada, como defendeu seu ministro do meio-ambiente Ricardo Salles. Previsível, o jeito criminoso de agir nesta e em outras tantas questões já havia ficado claro quando ele demitiu o fiscal do Ibama que o multara anos antes por pesca ilegal.

Com um ex assim, Lula poderia ter nadado de braçada. Mas fraquejou. Atraiu o brilho de Marina Silva, respeitada em todos os fóruns mundiais, mas evitou fortalecê-la internamente. Já nos primeiros tempos de governo, a ministra teve seu poder esvaziado pelo Parlamento e pelo PT, partido do presidente. Lula não atendeu aos apelos do Ibama por mais funcionários, não se mobilizou quanto à redução da fiscalização, não correu atrás de recompor o ICMBio que Bolsonaro desmontou. Apostou – e ainda aposta – na exploração de petróleo na margem equatorial, contra as argumentações técnicas do Ibama. Mais: não deu atenção aos alertas de que a seca viria. E com ela, mais fogo.

Cabe aqui um depoimento pessoal. Em junho, naveguei no belíssimo Rio Negro por quatro dias. Todos eram unânimes em dizer que a seca nos meses seguintes seria ainda mais severa do que em 2023, quando a região já havia sofrido um bocado. As marcas nos troncos das árvores gigantescas nos igarapés já mostravam metros de baixa. Era possível antecipar o inferno e saber que muitas comunidades ribeirinhas ficariam sem comunicação, sem água e comida. No mínimo, daria para evitar o amargor dessas populações, pelo menos estocar alimentos e água potável.

O costume de o país alocar recursos para cobrir “urgências anunciadas” define um presente meia-boca e um futuro sombrio. No Rio Grande do Sul, os recursos emergenciais já se foram e parte significativa da infraestrutura do estado ainda está em frangalhos, com prazos de até dois anos para ser concluída. Muitas das pessoas que perderam tudo continuam sem ver o dia seguinte.

Nas regiões incendiadas do país as providências limitam-se a recursos para apagar o fogo da vez e punir quem atiçar chamas. Ninguém fala no próximo ano, muito menos na obrigatória recuperação das áreas devastadas, o que dificilmente acontecerá. Fazê-lo exigiria planejamento, mão de obra especializada e muito dinheiro, recursos que os orçamentos da União e dos estados nem pensam em prever. Aqui reside o nunca, que, ao contrário do dito popular, quase sempre acompanha o que tarda.

Mary Zaidan é jornalista 

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