Aceitam-se pecadores (Por Miguel Esteves Cardoso)

Ouço dizer mal da Igreja Católica, e da maneira como está sempre atrasada em relação aos avanços da Humanidade, mas há uma coisa – uma coisa enorme – em que é a Humanidade a atrasar-se cada vez mais, em relação à qualidade mais antiga da Igreja Católica: o perdão.

Perdoar é o oposto da vingança, do rancor, do julgamento incessante de tudo e de todos, e do maniqueísmo dominante, que divide a Humanidade em maus e bons, entre quem não merece nada, e quem merece tudo.

Lembro-me de me agarrar ao perdão quando o Father Fintan, o padre irlandês que nos dava as primeiras aulas de catequese, nos assustava a todos com os horrores do pecado original.

Mal nascíamos, já éramos pecadores. Parecia o cúmulo da injustiça, culpar logo quem nem sequer tinha tido uma oportunidade de pecar: o recém-nascido.

Mas agora percebo: inscreviam-nos logo no clube dos pecadores, para depois podermos pecar à vontade. Assim, não nos desabava a alma em cima, quando a manchássemos com o primeiro pecado: “Não te preocupes, puto, já é o segundo. O teu primeiro já estava catalogado.”

Perguntámos repetidamente ao Father Fintan se qualquer pecado era perdoado. E ele, chateado, que sim. E nós, distraídos a aula inteira, a inventar maldades: “Mesmo se matasse a família inteira?”, “Mesmo que deitasse fogo à escola e o Father Fintan ficasse carbonizado?”

O preço do perdão era o arrependimento. E quem é que não se arrepende, até das maldades mais pequenas? Era praticamente uma licença para pecar.

O arrependimento vai-se aprendendo à medida que se peca, tornando-se cada vez mais sincero.

Parecia até, dadas as histórias dos grandes pecadores que foram magnanimamente perdoados, que estávamos a ser encorajados a pecar à grande, para poder ter acesso à higiene profunda da redenção.

É fácil brincar com o perdão e com o pecado: é uma das benesses que se oferecem, das mais deliciosas e unificadoras. Mas perdoar é o cúmulo da inclusividade, da empatia e da justiça social.

(Transcrito do PÚBLICO)

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