SP: presos estrangeiros estão há quase 5 anos sem contato com famílias

São Paulo — Estrangeiros que estão presos em São Paulo estão há quase cinco anos sem conseguir falar com a família. O motivo é uma exigência da Secretaria da Administração Penitenciária do Estado (SAP), que demanda que os familiares dos imigrantes cadastrem dados como CPF para ter acesso ao envio de e-mails. O documento, no entanto, é de emissão brasileira.

Por essa razão, a Defensoria Pública da União (DPU) e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE-SP) entraram com uma liminar na Justiça exigindo, no prazo de 30 dias, um cronograma para viabilizar de forma permanente as correspondências e visitas virtuais de pessoas estrangeiras a seus familiares presos, ao menos semanalmente, da mesma forma que ocorre com detentos nativos brasileiros.

A DPU lida com as questões específicas dos imigrantes, e a DPE-SP trata das questões de execução penal, explicou o defensor público Bruno Shimizu, coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da DPE-SP e um dos autores da liminar.

A liminar foi acatada pela juíza Luiza Barros Rozas Verotti, da 13ª Vara de Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) na última quarta-feira (11/12).

Questionada pelo Metrópoles, a Procuradoria Geral do Estado (PGE-SP), frente à SAP, afirmou que o caso está sob análise. Ainda cabe recurso da decisão.

Presos estrangeiros em SP

De acordo com a SAP, há 1.158 pessoas estrangeiras presas em SP, sendo 181 mulheres e 977 homens. A maioria está presa por tráfico internacional de drogas.

As unidades de referência para custódia de presos estrangeiros no estado, ainda conforme a SAP, são a Penitenciária de Itaí (masculina) e Penitenciária Feminina Sant’ana (feminina, para detenção provisória e cumprimento de pena no regime fechado).

Há também os Centros de Progressão Penitenciária (CPPs) Femininos de São Miguel Paulista e do Butantan (unidades femininas, para cumprimento de pena no regime semiaberto).

Sem contato com a família

De acordo com o pedido da DPE-SP, o sistema de videoconferência foi instalado em todas as unidades prisionais do estado no período da pandemia. O objetivo era permitir o contato dos detentos com as famílias durante o isolamento social. Em julho de 2020, cerca de 176 presídios já contavam com a estrutura tecnológica necessária.

Os presos estrangeiros, no entanto, não puderam aproveitar o benefício na prática. “Isso porque a SAP sempre exigiu dos visitantes, para cadastramento no rol de visitas, a apresentação de documentos nacionais, tais como o CPF e certidões de antecedentes criminais, os quais os/as familiares estrangeiros não possuem e/ou não têm acesso”, diz a liminar.

Desde então, quase cinco anos depois, a SAP ainda não regularizou uma forma de que os imigrantes possam contatar suas famílias. Portanto, aqueles que estão presos desde 2020 estão há aproximadamente meia década sem conseguir falar com seus familiares.

Ainda segundo a liminar, recentemente, o Consulado das Filipinas procurou a Defensoria Regional de Direitos Humanos em São Paulo, órgão da DPU,  relatando alguns problemas que presos filipinos e outros presos estrangeiros estão vivenciando na Penitenciária Cabo PM Marcelo Pires da Silva, em Itaí, no interior paulista.

Segundo o consulado, os presos não conseguem estabelecer qualquer tipo de contato com seus familiares, na medida em que não é possível realizar videoconferências com os seus parentes estrangeiros por meio do Programa Conexão Familiar da SAP.

De acordo com as informações do consulado, muitos familiares estão fora do país e são pessoas de poucas condições financeiras, “o que lhes permite apenas comunicar com o Brasil por sistemas de comunicação pela internet”.

O consulado filipino apontou ainda que o cadastramento dos familiares dos presos é funcional apenas para pessoas residentes no Brasil, já que as famílias não terão oportunidade de terem documentação e nem endereço no país, o que impede também o cadastramento destas pessoas no sistema da SAP, como apontado anteriormente.

Além disso, o envio de cartas do país asiático às penitenciárias brasileiras tem um alto custo, apresentando outro entrave. E, conforme o consulado, mesmo aqueles que conseguem enviar e-mails nunca têm resposta. Isso porque o presídio informa que nunca recebeu qualquer comunicação dos parentes.

Garantias na legislação

Na liminar, as defensorias destacam o direito incontestável da população presa à visitação e ao contato familiar. A ação cita a Constituição Federal quando aponta que a convivência familiar é reconhecida como direito humano básico das pessoas custodiadas.

O documento também destaca que a imposição de obstáculos para o direito à convivência familiar atenta contra o artigo 226 da Constituição, “que garante a proteção da família, locus base da sociedade, merecedora de especial proteção do Estado”.

A defensoria aponta ainda que o contato das pessoas presas com seus familiares contribui para o processo de reintegração social, o que é a finalidade básica da execução penal, conforme artigo 1º da Lei de Execução Penal.

A liminar cita, por fim, as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos, a Constituição estadual de São Paulo, o Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão, da ONU, e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, como legislações que asseguram ao detento o direito de manter contato com a família.

“Não resta dúvidas que, tanto em âmbito nacional quanto internacional, é reconhecida a importância de se manterem os vínculos familiares e sociais da pessoa presa”, diz a defensoria na liminar.

Entrave para a ressocialização do preso

A advogada especialista em direitos humanos e direito internacional, Victoriana Gonzaga, destaca que, ao detento, é privado apenas o direito de ir e vir. Todos os demais direitos fundamentais se mantêm preservados pela Constituição Federal e pela Lei de Execução Penal, reforça a advogada.

“O descumprimento de qualquer um desses direitos, não só desumaniza a pena de restrição de liberdade, mas também viola alguns compromissos internacionais do Brasil, que reconhecem a importância de preservação dos vínculos durante o cumprimento da pena”, disse.

“Manter o contato familiar é indispensável para a ressocialização. Primeiro, porque o vínculo com a família reduz o isolamento emocional, obviamente, e favorece a reintegração desse detento, então, ela contribui para o objetivo maior do que a pena, que é a reabilitação”, completa Victoriana.

Para ela, quando existe um programa específico de contato virtual entre presos e familiares, o Conexão Familiar, e somente os presos estrangeiros não têm acesso, está havendo uma distinção entre detentos.

A advogada destacou ainda as condições precárias dos presídios paulistas, que têm registros de tortura, falta de acesso a itens de higiene pessoal e ausência de cuidados de saúde, além da forte presença do crime organizado.

“Se a gente fala de uma condição precária, de um estrangeiro que tem um distanciamento físico, barreira linguística, numa condição como essa, e se eu ainda afasto dele do convívio familiar, eu dificulto a reintegração dele, dificulto a reabilitação dele. Então, eu estou indo contra o objetivo da pena”, disse.

Bruno Shimizu reforça que o preso sem notícias da família está impossibilitado de manter relações fundamentais para a sua reintegração social. Segundo o defensor público, esse cenário cria um afastamento, e abre margem para a entrada desses estrangeiros no crime organizado, que passa a atuar como uma rede de apoio ao detento.

“Então, na verdade, garantir esse contato com familiares, com a sua comunidade, é política de segurança pública. A gente está tentando evitar reincidência, evitar que essas pessoas sejam novamente presas e que elas sejam regimentadas por organizações criminosas”, destacou.

Bruno destacou ainda, em meio a esse contexto, a dor das famílias que sequer têm notícia se o seu parente preso continua vivo.

“Isso atinge os familiares, que não cometeram um crime nenhum, que não tem sequer uma pena a cumprir, e que são punidos por essa política, que é uma política que negligencia realmente essas especificidades”, disse.

O que pode ser feito

Victoriana destaca que a SAP precisa superar as dificuldades burocráticas atreladas aos documentos dos familiares. Ela sugere, por exemplo, o uso de passaportes e parcerias com os consulados para verificar e cadastrar os parentes dos presos. “É só querer superar esses desafios”, disse.

Bruno concorda, e acrescenta que uma reformulação para presos estrangeiros não significaria aumento dos gastos públicos. “Não usar esses equipamentos é uma escolha, porque não serve de nada. Não precisa gastar dinheiro público com isso, sabe? É uma questão de organização interna”, afirmou.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.