O Brasil e os principiantes (por Gustavo Krause)

O genial Tom Jobim nos legou a frase “O Brasil não é para principiantes”. Como conquistou o mundo, combinando com apenas sete notas musicais, usou 24 palavras para demonstrar que a dimensão histórica e cultural do nosso país não se limita ao olhar simplista de “amadores”.

Não faltam, porém, obras magistrais de pesquisadores, cientistas sociais. argutos observadores e, até mesmo, da instigante canção “Que país é este?” (Renato Russo, banda “Legião Urbana”,1987) que tentaram e continuam tentando compreender ou decifrar o enigma chamado Brasil.

Aliás, as tentativas de decifrar o enigma, a curto, médio e longo prazo, revelam contrastes, avanços significativos e sérios retrocessos, num contexto de incertezas, permeado pelo pessimismo, enfermidade congênita dos intelectuais, e contaminado pelo “conservadorismo político” com os seus diletos filhotes: “os direitos adquiridos, a procrastinação e um paternalismo malandro” no dizer do brilhante filósofo, cientista político e articulista Fernando Schüler.

Nas últimas cinco décadas, houve prolongados momentos em que o Brasil, não tinha moeda e sim a cumplicidade aritmética da correção monetária que mantinha a vida econômica sob aparelhos; não tinha orçamento que foi de peça ficcional ao estado atual de sequestro dos recursos públicos pelo clientelismo político; e um federalismo truncado, não-cooperativo, que cumpria o destino histórico determinado, na origem, para legitimar a hipertrofia do poder federal.

Por sua vez, a transição democrática, menos segura e mais gradual do que o prometido, venceu uma corrida de obstáculos e, no ano em curso, celebra 40 anos da chegada de um civil à Presidência da República, instaurando-se a plenitude do regime democrático com a promulgação da Constituição de 1988.

Há uma procedente pergunta diante das dificuldades estruturais e da fragilidade instrumental do processo político: sem moeda, sem orçamento, sem federação e sem democracia, o país funcionava? Funcionava precariamente, mas funcionava. Foi um percurso acidentado. E como obra inacabada, a democracia e as instituições que lhe dão sustentação correm sempre riscos e graves ameaças de ruptura como evidenciaram os fatos ocorridos em 08/01/23, felizmente, sob o controle dos mecanismos de defesa do regime e o império da lei.

Neste processo, é possível identificar dois sinais extremamente positivos: mais de uma geração nasceu e tem vivido a saudável experiência de respirar a liberdade em suas múltiplas dimensões. Vale dizer, a democracia não é uma dádiva, mas o resultado de uma incessante luta que se alicerça no dever de cada cidadão incorporado a uma cultura democrática. A mesma consideração vale para a estabilidade da moeda e o horror à inflação como patrimônios da sociedade.

No entanto, seguem contradições e contrastes nos desafiando. O recorte temporal de fim e começo de ano é apropriado para este tipo de reflexão. O maior contraste vem de dois usuais indicadores que escancaram a desigualdade social do país: o Brasil, está entre as 10 maiores economias do mundo (PIB de 2,33 trilhões de dólares) e, de acordo com o PNUD (2021/2022), a afrontosa desigualdade social nos coloca entre as 15 nações mais desiguais do mundo: 14º lugar empatado com o Congo (48,9, medido pelo coeficiente de Gini).

Curiosamente, nesta fase em que tradicionalmente afloram os sentimentos fraternos e uma pausa para o descanso possível, agravaram-se tensões políticas entre os poderes por conta de “suas excelências” as emendas parlamentares e vieram à tona “previsões” nada animadoras, sobre crescimento econômico, trajetória da dívida, a já contratada alta na taxa de juros, a desidratação do ajuste fiscal, comprometendo o equilíbrio das contas públicas, alta do dólar com seguidas intervenções do BACEN, e expectativas negativas do mercado e dos agentes econômicos.

A despeito da margem de erro dos preditores/adivinhos (hóspedes do oitavo círculo do Inferno de Dante), o sentimento identificado na população brasileira é positivo em relação ao futuro. Segundo o Radar FEBRABAN/IPESPE, 70% dos entrevistados se dizem satisfeitos com sua vida pessoal; 46% que a vida vai melhorar; 34% que a situação permanecerá estável; 80% se disseram esperançosos. Na pesquisa IPESPE/Observatório – AGU, 81% dos entrevistados concordam que apesar de ter problemas, ainda assim, a democracia é o melhor regime; 70% preferem a democracia a qualquer forma de governo; 77% afirmam que a democracia permite resolver problemas; 55% afirmam que a democracia funciona mal (sinal da crise de representação).

Diante das distintas percepções, resta a conclusão de que existem dois brasis: um Brasil que trabalha menos do que pode; outro Brasil que trabalha mais do que pode.

Ou seja, assimetria de poder responde ao grave problema da desigualdade de renda. Vem daí resposta ao que país é este? “País dos privilégios – Volume 1: Os novos e velhos donos do poder” (Ed. Companhia das letras, 2024). O autor, Bruno Carazza, de sólida formação intelectual, mestre em economia, doutor em Direito, professor, servidor público licenciado, colunista do Valor Econômico, produziu (este é o primeiro de três volumes) uma obra desafiadora.

Não se trata de peça acusatória com ranços moralistas. Se assim fosse, não passaria da primeira página. O livro resulta de um mergulho na sociologia política e na pesquisa histórica tendo como bússola a obra seminal de Raymundo Faoro (Os donos do poder: Formação do patronato político) com a responsabilidade do jornalista que, diariamente, escreve o rascunho da história.

O longínquo patrimonialismo descende da Casa de Avis, sob o reinado de D. João I, 1385. Por aqui deitou profundas raízes de onde brotaram vícios da política de clientela, do corporativismo e da relação promiscua entre o público e o privado.

Formado o grupo social do “estamento” aristocrático/burocrático, pactuado com capitalismo de compadrio – a minoria que pode mais – fundaram-se privilégios (a etimologia define como lex privata) e sob formas criativas do nosso léxico: mordomias, penduricalhos, jabutis, boquinhas, e formas tradicionais: subsídios, isenções, reservas de mercados, anistias fiscais (Refis) e por aí vai.

Sai ano, entra ano, o Brasil não se emenda; requer se remenda. E realiza a profecia de Frei Vicente do Salvador, o Heródoto Brasileiro, dita em 1627: “nenhum homem nesta terra é republico. Nela zela ou trata o bem comum, senão do particular”.

Gustavo Krause foi ministro da Fazenda

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