Pesquisadoras fazem perfil do uso da inseminação caseira no Brasil

*O artigo foi escrito pela psicóloga Roberta Gomes Nunes, professora da Escola de Administração Judiciária (ESAJ), e pela psicóloga Anna Paula Uziel, profesora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e publicado na plataforma The Conversation Brasil.

Diante dos altos custos dos tratamentos em clínicas de medicina reprodutiva, a inseminação caseira (IC) ganhou impulso no Brasil e é feita em casa com materiais acessíveis e orientações obtidas em redes sociais. Mas a percepção de que a prática aumenta o risco de transmissão de doenças, a misoginia da sociedade e a ausência de uma regulamentação específica para a prática geram incertezas.

A prática consiste em coletar sêmen humano fresco em recipientes descartáveis e transferi-lo para o corpo de alguém que tenha útero com a ajuda de seringas ou cateteres e sem contato sexual, para fecundar óvulos.

Diferentemente dos tratamentos que envolvem a infraestrutura das clínicas de medicina reprodutiva e a participação de especialistas, a inseminação caseira (conhecida pela sigla IC) é feita em casa com materiais acessíveis e orientações obtidas em redes sociais. Em idiomas como espanhol e francês, o método é conhecido como “inseminação artesanal”.

Tentantes (quem deseja ter filhos) conectam-se a doadores de sêmen em plataformas como o WhatsApp ou Facebook e combinam condições. Os doadores descrevem suas motivações e intenções (que vão desde ajudar mulheres a serem mães até doar substâncias corporais ou disseminar seus genes pelo mundo) e trocam informações sobre exames prévios, planejamento do ciclo fértil e orientações para realizar o procedimento de maneira segura.

A IC é uma alternativa especialmente procurada por mães solo, casais de mulheres lésbicas e pessoas que desejam compartilhar a parentalidade fora dos moldes tradicionais. Homens trans também recorrem ao método. Essas questões foram investigadas na tese de doutorado “Uma análise cartográfica da inseminação caseira: caminhos possíveis para maternidades lésbicas”, defendida em 2024 por Roberta Gomes Nunes, que foi orientada por Anna Paula Uziel.

Foram entrevistadas nove mulheres lésbicas que tiveram filhos por IC e residem no Rio de Janeiro, quatro doadores de sêmen do Rio de Janeiro e São Paulo, duas advogadas, uma defensora pública, um juiz, uma médica especialista em reprodução assistida e dois representantes de órgãos reguladores (Conselho Federal de Medicina -CFM e 1 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa).

As entrevistas mostraram que o principal motivo para recorrer à IC foi a busca por alternativas mais acessíveis e autônomas em um contexto no qual a reprodução assistida tradicional se mostra inacessível.

Dificuldades de acesso

A primeira dificuldade que cerceia o acesso aos tratamentos e clínicas de medicina reprodutiva é o alto custo. Dados do 14º Relatório do Sistema Nacional de Produção de Embriões (SisEmbrio) indicam que, anualmente, são realizados cerca de 56 mil ciclos de FIV (fertilização in vitro) no Brasil. Porém, esse benefício se mantém restrito apenas à população de maior poder aquisitivo, uma vez que cada tentativa de gravidez (ciclo) custa, em média, R$ 30 mil. Os preços proibitivos se mantém, ainda que técnicas como a FIV e a ICSI (injeção intracitoplasmática de esperma) tenham começado a se disseminar na década de 1990.

O acesso à medicina reprodutiva pelo SUS também é muito restrito. Segundo levantamento de 2023 feito pela Agência Brasil, apenas quatro hospitais no país realizavam procedimentos de medicina reprodutiva de alta complexidade de forma gratuita. É uma limitação estrutural que exclui boa parte da população.

Nesses cenários, pessoas sozinhas, casais, trisais ou em outras combinações como a pessoas em co-parentalidade (em que em geral gays e lésbicas optam pela combinação de gametas para terem filhos/as em conjunto) decidem experimentar a IC para escapar dos custos, da burocracia e viabilizar novos arranjos familiares.

Com a disseminação da IC, surgem manifestações de toda ordem, exacerbando a misoginia que constitui a sociedade. Vídeos em redes sociais ridicularizam a prática e criticam quem opta por essa via, com ataques frequentes às decisões das mulheres e ao uso que fazem de seus próprios corpos.

Profissionais da medicina tendem a alertar que a inserção de sêmen sem o devido preparo na vagina eleva os riscos de transmissão de doenças e danos físicos decorrentes do uso inadequado de materiais, assim como a Anvisa. A falta de supervisão por profissionais da saúde é apontada como um fator que aumenta os riscos associados ao método.

Falhas na legislação

A ausência de regulamentação específica para a IC gera incertezas legais. Embora a Constituição de 1988 e as mudanças sociais das últimas décadas tenham ampliado o conceito de família, reconhecendo-a independentemente do casamento ou de um modelo cis-heteronormativo, a IC ainda é vista com preconceito por prescindir de uma relação sexual ou do envolvimento direto de um homem.

No Brasil, a reprodução assistida é regulamentada pela resolução 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina (CFM) e pelo provimento 149/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A resolução do CFM estabelece o anonimato na doação de gametas. O objetivo do anonimato é evitar disputas legais e afirmar que a doação é um ato altruísta, sem a intenção de criar vínculos familiares. No entanto, em sua última edição, a resolução permitiu exceções para doações entre familiares.

Além disso, a legislação brasileira, a exemplo da Lei 9.434/1997 e a Lei de Biossegurança (11.105/2005), proíbe a comercialização de gametas e embriões, reforçando que a manipulação do corpo humano deve ser ética e sem fins lucrativos.

Mesmo com avanços legais, a presunção de paternidade continua presente em muitos aspectos do registro civil no Brasil. Os homens, se forem sozinhos fazer o registro, podem colocar seu nome e o da mãe na certidão da criança. No entanto, o casamento é um requisito para que a mulher registre a criança no nome do pai se ela comparecer sozinha ao cartório. Esse modelo, que presume que o pai é o marido da mãe, é cada vez mais anacrônico, mas ainda afeta diretamente casais que optam por métodos alternativos de concepção, como a IC, em situações de dupla maternidade.

O casamento entre duas mulheres, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011 e regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2013, não tem sido suficiente para o reconhecimento da dupla maternidade em casos de IC. Diferentemente de casais heterossexuais ou homoafetivos que utilizam clínicas, mulheres que recorrem à IC precisam buscar o reconhecimento judicial da dupla maternidade durante a gravidez ou após o nascimento da criança.

Recentemente, o STJ reconheceu a validade da dupla maternidade em um caso de IC, cujo direito ao reconhecimento materno conjunto tinha sido negado em primeira e segunda instâncias no Tribunal de Justiça de São Paulo. O STJ destacou que o planejamento familiar e a constância do casamento justificam o reconhecimento da filiação, mesmo sem a participação de uma clínica.

O Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFam) e a Defensoria Pública-Geral da União têm atuado para regularizar o registro civil de crianças geradas por IC, buscando eliminar a exigência de documentos de clínicas médicas. O IBDFam apresentou ao CNJ novo pedido de providências com base no julgamento recente do STJ, solicitando que não seja exigido o documento da clínica. Com base no recente julgamento do STJ, essas entidades esperam que, em breve, mulheres que optaram pela IC possam ter seus direitos reconhecidos sem necessidade de intervenção judicial, garantindo igualdade de tratamento com outros métodos de reprodução assistida.

Tema tão atual e extenso precisa ser debatido pela sociedade. O documentário “E se (não) for Inseminação Caseira”, feito a partir da pesquisa realizada para a tese, propõe ampliar a discussão sobre essas questões, abordando tanto os desafios quanto as potencialidades do método. O filme convida a refletir sobre a necessidade de políticas públicas que reconheçam e protejam os novos arranjos familiares, garantindo que todas as pessoas possam exercer plenamente seus direitos reprodutivos.

Grupos que tiverem interesse em promover um debate acompanhado da exibição do documentário podem entrar em contato pelo e-mail [email protected].The Conversation

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