Psicopatologização da vida cotidiana cresce e levanta debates

Uma análise da Folha, baseada em dados da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Sistema Único de Saúde (SUS), revelou que, pela primeira vez, os índices de ansiedade entre crianças e jovens superam os dos adultos.

De 2013 a 2023, a taxa de atendimento de crianças entre 10 e 14 anos com transtornos de ansiedade atingiu 125,8 casos a cada 100 mil, enquanto entre adolescentes esse número chegou a 157 a cada 100 mil. Em contraste, a taxa para pessoas acima dos 20 anos foi de 112,5 a cada 100 mil em 2023.

Essa mudança de cenário, observada a partir de 2022, reflete um quadro mais crítico para os jovens, impulsionado por fatores como crises econômicas e climáticas, autodiagnósticos simplistas e o uso excessivo de celulares e jogos eletrônicos, conforme apontam diversos estudos e especialistas.

Alexandre Nicolau Luccas, professor e coordenador do curso de Psicologia do Centro Universitário Paulistana (UniPaulistana), ressalta o aumento da demanda por diagnósticos, especialmente entre crianças. “Se olharmos especificamente para as crianças e o universo em que elas vivem, a demanda por diagnósticos para identificar fragilidades, dificuldades e problemas só aumenta. A demanda vem das famílias, das escolas e de todas as instituições que acolhem e trabalham com crianças nas mais diferentes faixas etárias”, afirma o professor.

Essa busca incessante por explicações médicas levanta a questão: estariam todas as crianças realmente doentes? Transtornos como TDAH, TOD, TAG, TOC, pânico e depressão, entre outros, passaram a fazer parte de um vocabulário comum na vida escolar e familiar. Mais recentemente, o vício em jogos eletrônicos e redes sociais também entrou na lista de preocupações.

Um estudo conduzido pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP) revela que aproximadamente 30% dos adolescentes brasileiros apresentam um uso excessivo de jogos eletrônicos, preenchendo os critérios para o Transtorno de Jogo pela Internet (TJI). Essa condição pode causar danos significativos à saúde emocional e à vida social dos jovens.

“Esse vício surgiu na sequência da pandemia de Covid-19. As crianças ficavam na frente das telas para estudar e agora não conseguem mais sair. Os educadores estão desesperados e os pais também”, observa Alexandre.

O professor pontua que a demanda por psicologia cresceu de forma alarmante, não apenas para tratar os efeitos do isolamento social, como ansiedade e depressão, mas também para apoiar pais e educadores. “Claro, a psicologia responde a essa demanda formando cada vez mais profissionais especializados em neuropsicologia. Os planos de saúde passam a dispor desses profissionais entre seus especialistas. Mas, de novo, o que está acontecendo?”, questiona.

O professor de Psicologia da UniPaulistana destaca a relação entre o aumento dos diagnósticos e o lançamento de novos manuais de doenças mentais, como o CID e o DSM, que incluíram um número maior de condições.

Segundo ele, esses manuais não estão desvinculados dos avanços da indústria farmacêutica. “Quanto mais se conhece sobre o funcionamento do cérebro, mais formulações medicamentosas aparecem no mercado e mais doenças são diagnosticadas. Vamos medicar as crianças e consertar aquilo que está aparecendo como problemas de aprendizagem, como problemas nas relações sociais e afetivas significativas de suas vidas. Estamos no caminho errado”, alerta.

O professor enfatiza que, no campo das doenças psicológicas, os critérios diagnósticos não se baseiam em evidências empíricas como acontece com doenças orgânicas. Ele explica que, diferentemente das doenças físicas, cujas evidências aparecem em exames clínicos, os sintomas das condições psicológicas são experiências subjetivas.

“Os sintomas são experiências subjetivas, dependentes, portanto, das pessoas que estão vivenciando esses sintomas. A criança não consegue prestar atenção numa aula, fica pulando na sala de aula, incomoda os colegas e o professor. A criança não aprende, não tem foco e não tem concentração ou interesse em aprender”, descreve.

O especialista critica a psicopatologização da vida cotidiana e a busca por medicamentos como solução mágica para problemas comportamentais e emocionais. “Um ansiolítico, por exemplo, não trata a causa da ansiedade. Ele diminui a percepção que o sujeito tem sobre a sua ansiedade. Um antidepressivo não trata a causa da depressão. De novo, ele apenas permite que o sujeito não viva tomado por ela”, alerta.

Alexandre enfatiza a necessidade de um olhar mais atento e humanizado para a vida e as experiências subjetivas das crianças, ressaltando que a medicalização excessiva pode mascarar a verdadeira origem dos problemas e desviar a atenção das causas reais, como as condições sociais e educacionais inadequadas. “Ao invés de investirmos na solução desses problemas, preferimos buscar o diagnóstico de uma doença, porque para ela, parece existir um remédio. Apenas parece. E quanto mais caminhamos nessa direção, mais nos afundamos”, conclui.

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