A hipócrita “lição” de democracia de J.D. Vance (Por Andreia Sanches)

Logo no arranque, o vice-presidente dos EUA admitiu que havia o risco de aquelas palmas iniciais que marcaram as suas primeiras palavras no púlpito da Conferência de Segurança de Munique poderem ser as últimas. J.D. Vance acabara de demonstrar a sua solidariedade com a cidade que fora palco, na véspera, de um atropelamento cometido por um migrante afegão, que resultou em dezenas de feridos. E foi aplaudido.

Mas a intervenção que se seguiu gelou os delegados. Vance voltou a falar do atropelamento para ilustrar o que diz ser o problema que a Europa tem com a imigração. Nas palavras de Patrick Wintour, no The Guardian, o discurso foi de “22 minutos de hipocrisia risível, retratos distorcidos da democracia europeia e insensibilidade em relação ao trauma da Europa com o fascismo”.

Vance disse que a Europa está a suprimir a liberdade de expressão e a ignorar quem pensa diferente. Estamos a falar do vice de um país onde universidades e variadíssimas organizações financiadas pelo Estado estão, de há semanas a esta parte, a expurgar dos seus documentos oficiais palavras que se tornaram proibidas com a Administração Trump, como “diversidade”, “desinformação”, “ativismo”, “racismo” ou “gênero”.

A guerra da Ucrânia e o papel da União Europeia (UE) e dos EUA no conflito foram quase ignorados, dois dias depois de Trump ter falado ao telefone com Putin sem que se saiba bem para acordar o quê. Vance preferiu dizer que o inimigo da Europa não é “nem a China nem a Rússia” – está cá dentro. No “recuo” dos “valores fundamentais” partilhados pelos EUA.

“A democracia não sobreviverá se as preocupações do seu povo forem desconsideradas”, disse ainda aos delegados mudos, lamentando que tribunais na UE cancelem eleições como aconteceu na Romênia (após a uma investigação que revelou uma campanha de desinformação nas redes sociais alegadamente financiada pela Rússia). “Se a democracia pode ser destruída com 100 mil dólares de publicidade online de um país estrangeiro, é porque não é muito forte.”

Numa alusão ao fato de na Alemanha os principais partidos democratas não trabalharem com a extrema-direita defendeu que “não há espaço” para cordões sanitários seja a quem for.

Vance disparou em todas as direções. Sem pudor. Criticou vários governos europeus. Trouxe a Munique toda a cartilha populista, da imigração, ao aborto, à ideia de que regular redes sociais é limitar a liberdade. Preferiu cavalgar a tese da guerra cultural a explorar as soluções para a paz na Europa. E pôs a nu o fosso cada vez maior que se está a criar entre a política americana e a europeia.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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