Celebridades, ovos e drogas (por Tânia Fusco) 

De um lado, o brilho e a fama – quase sempre bem remunerados – das celebridades e seu glamuroso universo paralelo. De outro, a vida real com suas muitas dificuldades e crescentes ameaças. No meio, espantosas notícias.  “No México, atualmente, o contrabando de ovos supera o de drogas”.

Não há IA que suavize e enfeite esta nossa realidade. Ou, ao menos, consiga reduzir a peste da multidão de celebridades e suas bizarrices.

Tão antigas quanto Noé, celebridades (com suas veleidades) já mereceram crônica de Fernando Pessoa, que dispensa apresentações.  Escrito para O Jornal, de Lisboa – e então não publicado – o texto é 1915, 110 anos atrás. Também em um começo de século conturbado e ameaçador.

Perdoados conceitos, diferenças na grafia e na gramática, além de preconceitos assentados na época, ainda vale?

“Às vezes, quando penso nos homens célebres, sinto por eles toda a tristeza da celebridade.

A celebridade é um plebeísmo. Por isso deve ferir uma alma delicada. É um plebeísmo porque estar em evidência, ser olhado por todos inflige a uma criatura delicada uma sensação de parentesco exterior com as criaturas que armam escândalo nas ruas, que gesticulam e falam alto nas praças. O homem que se torna célebre fica sem vida íntima: tornam-se de vidro as paredes da sua vida doméstica; é sempre como se fosse excessivo o seu traje; e aquelas suas mínimas ações — ridiculamente humanas às vezes — que ele quereria invisíveis, coa-as a lente da celebridade para espetaculosas pequenezes, com cuja evidência a sua alma se estraga ou se enfastia. É preciso ser muito grosseiro para se poder ser célebre à vontade.

Depois, além dum plebeísmo, a celebridade é uma contradição. Parecendo que dá valor e força às criaturas, apenas as desvaloriza e as enfraquece. Um homem de génio desconhecido pode gozar a volúpia suave do contraste entre a sua obscuridade e o seu génio; e pode, pensando que seria célebre se quisesse, medir o seu valor com a sua melhor medida, que é ele — próprio. Mas, uma vez conhecido, não está mais na sua mão reverter à obscuridade. A celebridade é irreparável. Dela como do tempo, ninguém torna atrás ou se desdiz.

E é por isto que a celebridade é uma fraqueza também. Todo o homem que merece ser célebre sabe que não vale a pena sê-lo. Deixar-se ser célebre é uma fraqueza, uma concessão ao baixo-instinto (…) de querer dar nas vistas e nos ouvidos.

Penso às vezes nisto coloridamente. E aquela frase de que «homem de génio desconhecido» é o mais belo de todos os destinos, torna-se-me inegável; parece-me que esse é não só o mais belo, mas o maior dos destinos.

Diz-se que os herméticos da Rosa-Cruz, seita esotérica e magista, descobriram, desde o início dos tempos, o segredo da vida eterna, o elixir da vida; que, nunca morrendo, passam de época em época, através dos ciclos e das civilizações, despercebidos, nenhuns e, contudo, pela grandeza da coisa transcendental que criaram, maiores do que os génios todos da evidência humana. Da sua seita é o preceito, que cumprem, de se não darem nunca a conhecer. A sua presença eterna, que vive à margem da nossa transiência, vive também fora da nossa pequenez.

Vão-se-me os olhos da alma nessas figuras supostas — e quem sabe a que ponto reais? — que, verdadeiramente, realizam o supremo destino do homem: o máximo do poder no mínimo da exibição; o mínimo da exibição, por certo, por terem o máximo do poder. O sentido das suas vidas é divino e longínquo. Apraz-me crer que eles existam para que possa pensar nobremente da humanidade”.

 

Publicado pela editora Ática, de Lisboa, em 1966, no livro Páginas Íntimas e de Auto
Interpretação, com inéditos de Fernando Pessoa, selecionados e prefaciados por Georg
Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.

 

Tânia Fusco é jornalista 

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