O golpe vitorioso de Maduro (por Mary Zaidan)

Diz-se que o Brasil é um país sem memória, o que facilita a reincidência de eventos danosos na política e na economia. Populismo, tentativa de golpe, corrupção e arrepios fiscais estão aí para provar a tese. Mas a amnésia está longe de ser um fenômeno verde-amarelo – é global. A ponto de o mundo aceitar governos déspotas como o da Hungria de Viktor Orbán e da Turquia de Tayyip Erdoğan,  tímida reação à tomada da Criméia por Vladimir Putin, em 2014, ensaio para a absurda invasão da Ucrânia. Pelas nossas bandas, o terceiro mandato roubado pelo ditador Nicolás Maduro na Venezuela entrou no modo esquecimento e, perigosamente, vai se legitimando. Com a complacência do Brasil e de outras democracias.

A tentativa de redemocratização da Venezuela começou com o Acordo de Barbados, mediado pela Noruega, em outubro de 2023. Com participação direta dos americanos, testemunho e aval do Brasil, governo e oposição venezuelanos firmaram um pacto de eleições livres e libertação de presos políticos, tendo como contrapartida a suspensão de sanções dos Estados Unidos, à época sob o comando do democrata Joe Biden.

Os festejos pelas assinaturas duraram pouco. No mesmo mês em que convocou eleições, Maduro intensificou o sufoco à oposição. Indicada candidata única das oposições, María Corina Machado, franca favorita ao pleito, teve seus direitos políticos suspensos, o mesmo ocorrendo com sua indicada, Corina Yoris. Poucas horas antes do prazo final de registro de candidatos, a oposição inscreveu Edmundo González Urrutia, que, de acordo com as atas eleitorais obtidas pela oposição – confirmadas por observadores internacionais como o Carter Center -, venceu o pleito de 28 de julho de 2024 com 67,1% dos votos.

Oito meses depois das eleições fraudadas, nada mudou. Maduro jamais apresentou as atas oficiais e, sem colocar tanques nas ruas, se autodeclarou vitorioso. Tomou posse em 10 de janeiro, iniciando o seu 13º ano de governo.

Empenhado em não deixar o aliado isolado, o ex-chanceler Celso Amorim, assessor especial de Lula, até tentou, sem êxito, consertar o inconsertável. Em conjunto, Brasil, Colômbia e México chegaram, ainda que de leve, a pressionar o bolivariano. Mas capitularam. Foram relaxando, deixando o tempo cuidar da pendenga – com Maduro lá, sem ser incomodado.

Traídos, os Estados Unidos de Biden voltaram a impor sanções à Venezuela depois da fraude eleitoral, mesmo com perdas nas transações de petróleo. O novo ator no pedaço, Donald Trump, revirou tudo. Elegeu a Venezuela como o primeiro país da América Latina a receber uma delegação oficial de seu governo, para negociar soltura de presos americanos e extradição de imigrantes, e, claro, retomar as linhas do óleo negro. A mais nova do presidente americano é impor tarifas adicionais a qualquer país que compre petróleo da Venezuela. Hoje, os maiores importadores são China, Índia, Espanha e os Estados Unidos, que, pela lógica trumpista, seriam os únicos sem restrições para continuar a fazê-lo

Com o Brasil, o imbróglio continua. O PT, partido do presidente, aplaudiu, mas o governo Lula não reconheceu oficialmente a vitória de Maduro nem do opositor Gonzalez, exilado na Espanha.

A despeito dessas formalidades, os laços com o vizinho continuam ativos. No início deste mês, os dois países assinaram acordo de cooperação técnica em agricultura. Curiosamente, um dia depois de o ditador conceder 180 mil hectares de terras venezuelanas ao MST, movimento com o qual seu governo tem relações amistosas há quase duas décadas. Detalhe: desta vez, a doação tem um caráter adicional. O terreno gigantesco fica próximo a Esequiba, região equatoriana rica em petróleo e coberta por florestas, que Maduro afirma já ter incorporado à Venezuela, e que ele precisa povoar com velocidade.

Há outras encrencas: vira e mexe Maduro ameaça cercar a embaixada da Argentina que o Brasil assumiu em agosto do ano passado para proteger asilados políticos oposicionistas. Nesta seara, nada avançou. O prédio continua desconectado, ora com ora sem energia e sem abastecimento regular de suprimentos. Tirando daqui e pondo ali, Maduro faz gato e sapato de Lula, que, sem reação, permite a legitimação de uma eleição que contrariou frontalmente a vontade popular. Sem meias palavras, golpe.

Aqui, não se admitem interpretações enviesadas ou lapsos de memória: democracias não compactuam com ditaduras. Isso deveria se traduzir em repúdio às práticas golpistas da esquerda e da direita, sejam de Maduro ou de Jair Bolsonaro. Ambas são deletérias.

 

Mary Zaidan é jornalista 

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