São Paulo – A pena para o crime de injúria oscila entre seis meses e um ano de detenção. Na prática, isso não resulta em cumprimento de condenação no regime fechado. O delito é atribuído às duas estudantes de medicina que compartilharam um vídeo, em 17 de fevereiro, expondo a paciente Vitória Chaves da Silva, de 26 anos, que estava internada no Instituto do Coração (Incor).
Ambas não foram indiciadas pela Polícia Civil que, até o momento, somente instaurou um inquérito para apurar o caso, tipificado como injúria — que consiste em ofender a dignidade de uma pessoa, como consta no Código de Processo Penal. Após a repercussão do caso, as alunas retiraram a postagem do ar, que havia sido compartilhada no TikTok 11 dias antes de Vitória morrer.
O delegado Marco Antônio Bernardo, titular do 14º DP (Pinheiros) explicou que, ao concluir o inquérito, irá encaminhá-lo ao Ministério Público de São Paulo (MPSP). “Imagino que o MPSP não irá oferecer denúncia contra as estudantes, porque elas não são criminosas, mesmo com o erro que cometeram [de expor a paciente]”.
Ao invés disso, ele explicou que a Promotoria provavelmente irá, no lugar da denúncia, indicar para que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) abra um ação penal privada. Com isso, Cláudia Aparecida da Rocha Chaves, mãe de Vitória, poderá formalizar uma queixa-crime, por meio de um advogado, para dar andamento ao processo contra as estudantes na esfera criminal.
“Com certeza, quero que essa queixa-crime seja apresentada”, afirmou Cláudia ao Metrópoles. Ela constituiu com um advogado na última quinta-feira (10/4). Eduardo Lemos Barbosa, especializado em defender vítimas em casos de danos, afirmou à reportagem que o vídeo postado pelas estudantes “agrediu a moral” e maculou toda a trajetória de vida de Vitória e da família dela.
“Foi desmerecida a luta de Vitória, em razão do vídeo, que é mentiroso. As afirmações [das estudantes] não condizem com a vida dela [Vitória], nem com a realidade médica enfrentada. O vídeo é desabonador”.
Ele acrescentou que estuda o caso e que irá tomar todas as medidas, nas áreas criminal e cível, para garantir o reestabelecimento na vida de Cláudia e sua família.
Deboche de alunas de medicina
O caso envolvendo as estudantes de medicina veio à tona após o vídeo postado por uma delas viralizar e chegar à família da paciente. Na gravação, apesar de não falarem o nome da jovem, as estudantes Gabrielli Farias de Souza e Thaís Caldeiras Soares Foffano mencionam os três transplantes cardíacos e indicam quando os procedimentos foram feitos – na infância, na adolescência e no início da maioridade, o que coincide com o quadro de Vitória.
As estudantes comentam, no vídeo, que a paciente não havia tomado os remédios corretamente, razão pela qual teria sido submetida à sucessão de transplantes. Em certo momento, Thais afirma: “Essa menina está achando que tem sete vidas”.
Veja o vídeo:
A postagem, feita em 17 de fevereiro, foi visualizada por pouco mais de 212 mil pessoas. A repercussão do caso fez com que o vídeo fosse tirado do ar na última terça-feira (8/4).
“Um transplante cardíaco já é burocrático, já é raro, tem a questão da fila de espera, da compatibilidade, mil questões envolvidas… Agora, uma pessoa passar por um transplante três vezes, isso é real e aconteceu aqui no Incor e essa paciente está internada aqui”, afirma Thaís no vídeo.
Na postagem, Thaís ainda comenta que ela e a colega iriam se encontrar com Vitória em seguida. “A gente vai subir lá em cima [sic] e tentar conversar com essa paciente transplantada por três vezes.”
Antes do encontro, Gabrielli dá detalhes dos procedimentos aos quais Vitória foi submetida. “A segunda vez ela transplantou e não tomou os remédios que deveria tomar, o corpo rejeitou [o órgão] e teve que transplantar de novo, por um erro dela [Vitória]. Agora ela transplantou de novo, [o corpo] aceitou, mas o rim não lidou bem com as medicações.” É nesse momento que Thaís afirma que a paciente “acha que tem sete vidas”.
Vitória morreu 11 dias depois do vídeo, devido a um choque séptico e à insuficiência renal crônica.
Família contesta declarações
Cláudia, mãe de Vitória, contestou as declarações das estudantes. “O que elas dizem é inverídico e temos provas de tudo, de que ela [Vitória] seguia o tratamento à risca”, diz a mãe.
“A gente sempre acompanhou a Vitória. A gente sabia o quanto ela lutava para viver, né? Tanto é que tem um monte de ofício na promotoria de a gente pedindo ajuda com medicação, com passagem para vir no tratamento. Ela nunca faltou a uma consulta sequer, né? E minha filha tinha sede de vida. Tudo o que ela queria era viver. Aí vem uma pessoa e diminui a história dela, eu não aceito, quero Justiça”, desabafou Cláudia.
Após o episódio, a mãe registrou um boletim de ocorrência (B.O.) e acionou o MPSP
O que dizem as estudantes
As estudantes Gabrielli Farias de Souza e Thaís Caldeira Soares Foffano se posicionaram sobre o caso na tarde de quarta-feira (9/4). Em uma nota de defesa, as estudantes afirmam que o conteúdo divulgado no TikTok “teve como única intenção expressar surpresa diante de um caso clínico mencionado no ambiente de estágio”.
As alunas disseram ainda que a raridade da situação despertou a “curiosidade acadêmica” e as fez refletir sobre aspectos técnicos inéditos, proporcionados pela condição clínica de Vitória.
Gabrielli e Thaís não tiveram acesso ao prontuário da paciente, segundo o comunicado. “Não sabíamos quem era.” Além disso, ambas reforçaram não terem divulgado qualquer imagem da paciente.
As estudantes negaram “qualquer deboche ou insensibilidade”. “Nosso compromisso com a vida, a dignidade humana e os princípios éticos da medicina permanece inabalável”, ressaltaram.
Por fim, Gabrielli e Thaís manifestaram solidariedade à família de Vitória e afirmaram que estão tomando providências para esclarecer o caso e preservar suas integridades pessoais, acadêmicas e emocionais.
O que dizem Incor e USP
Em nota encaminhada à reportagem, o Incor declarou que não divulga dados de pacientes. A instituição afirmou, ainda, repudiar “veementemente” atitudes que violem os princípios da ética e confidencialidade. O instituto acrescentou que apura “rigorosamente o caso mencionado”, ressaltando que “adotará todas as medidas cabíveis”.
Procurada, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) disse que as alunas atualmente não têm qualquer vínculo acadêmico com a universidade ou com o Incor. As estudantes estavam no hospital em função de um curso de extensão de curta duração (um mês). “Assim que foi tomado conhecimento do fato, as universidades de origem das estudantes foram notificadas para que possam tomar as providências cabíveis”, diz nota.
“Internamente, a USP está tomando medidas adicionais para reforçar junto aos participantes de cursos de extensão as orientações formais sobre conduta ética e uso responsável das redes sociais, além da assinatura de um termo de compromisso com os princípios de respeito aos pacientes e aos valores que regem a atuação da instituição”, completa o texto.