Insano e calhorda (por Mary Zaidan) 

Criado há 30 anos em total desobediência à lógica, o pequeno município piauiense de João Campos retrata as mazelas de um Brasil disfuncional, ocupado por políticos que condenam o país ao subdesenvolvimento. Para atender a seus 2.970 habitantes, a cidade instalou 12 secretarias municipais em torno da Prefeitura e um Legislativo com 11 vereadores. Vive de transferências da União e é, proporcionalmente, a campeã na destinação de emendas parlamentares na modalidade Pix ou secreta. Nada menos de R$ 11.6 milhões foram enviados para lá pelo generoso Congresso, o que significa R$ 3,9 mil por habitante, mais do que o dobro do salário médio dos 417 trabalhadores locais.

João Campos não está só. De 1980 para cá, o país saltou de 3.974 municípios para 5.570, a maioria incapaz de gerar renda para sobreviver. Mendigam recursos nas assembleias estaduais e nos gabinetes de Brasília, e, não raro, na urgência do dinheiro, pagam corretagem. São ainda alvo preferencial para desvios do irrastreável orçamento secreto rebatizado de emendas de comissão, conforme tem sido confirmado por investigações da Polícia Federal.

É insano: dinheiro público gasto sem planejamento, pulverizado entre cidades e bolsos diversos.

Não se pretende aqui criminalizar emendas parlamentares legais e legítimas. A questão é que, ano a ano, os parlamentares extrapolam no volume e na criatividade para mantê-las em sigilo. Em 2025, o Parlamento vai operar R$ 53 bilhões do Orçamento da União via emendas, entre as individuais, de bancada e de comissão (modelo similar às secretas). No ano que vem, segundo o Projeto de Lei e Diretrizes Orçamentárias apresentado pelo governo no último dia 15, o Congresso vai executar R$ 56,5 bilhões. Em 2028, R$ 58 bilhões, e em 2029, R$ 61,7 bilhões, abocanhando 100% das despesas não obrigatórias. Isto é, tudo o que o governo tem para investir.

Aos gastos para satisfazer bases eleitorais, somam-se altos salários e mimos para a elite da coisa pública e a enorme quantidade de subsídios e incentivos fiscais que os lobbies de setores mais fortes conseguem arrancar do governo e do Congresso. No ano passado, essas benesses  ultrapassaram R$ 700 bilhões, duas vezes o PIB do Uruguai.

Tais disfuncionalidades punem o cidadão, mas são criadas e mantidas por serem essenciais para garantir o mínimo de alteração nas esferas de poder. Tanto é assim que emendas nada republicanas unem inimigos figadais do Centrão e do bolsonarismo com a turma da esquerda, cuja rubrica aparece em dezenas delas.

Mesmo que estivesse disposto a apertar as contas, algo que não está no horizonte do estilo “gasto é vida” da atual gestão, o governo não encontraria suporte no Parlamento para fazê-lo. Para encerrar os R$ 15 bilhões do Perse, criado na pandemia a fim de auxiliar o setor de eventos, o Ministério da Fazenda suou e continua no ringue, pressionado pelo Congresso e contestado por diversos segmentos – até pelo gigante Ifood, que continua sem recolher impostos. O fim da desoneração da folha de pagamentos, editada, reeditada e postergada, será outra luta, embora já esteja provado que ela pouco ou quase nada impacta na geração de empregos.

Para a maior parte dos brasileiros sobram serviços de quinta categoria. João Costa, incrustada no belo Parque Nacional da Serra da Capivara, tem menos de 20% de saneamento básico e a vexaminosa proporção de mortalidade infantil de 90,9 óbitos por mil nascidos vivos. No país, 59 milhões vivem na pobreza, 9,5 milhões na miséria; 90 milhões continuam sem esgoto, 32 milhões sem água encanada. Crianças e jovens frequentam as escolas mas pouco aprendem;  convive-se com a crescente sensação de insegurança e medo.

Aditando um pouco mais de crueldade no que já é duríssimo de engolir, suas excelências ainda querem urgência para anistiar golpistas. É mais do que insano – é calhorda.

 

Mary Zaidan é jornalista 

Adicionar aos favoritos o Link permanente.