Munir Kanaan fala sobre teatro, cinema e a paixão por contar histórias

“Dirigir Dois Papas tem sido uma experiência enriquecedora”. É assim que Munir Kanaan resume seu envolvimento com a peça que vem ganhando o coração do público por onde passa. Ator, diretor e produtor, o profissional transita com maestria entre os bastidores e os palcos, e agora também entre o teatro e o cinema.

Em entrevista exclusiva à coluna Fábia Oliveira, Munir revelou os desafios de adaptar uma obra já consagrada nas telas, destacou a importância do diálogo em tempos de polarização e compartilhou seus sonhos e próximos passos na carreira. “Hoje, vivemos em um mundo onde as bolhas sociais e os algoritmos reforçam divisões”, afirmou. “A peça nos ensina que discordar não significa romper”, completou.

Para além da montagem de Dois Papas, Munir Kanaan celebrou também a adaptação para o cinema de seu monólogo Horror Lavanda e a possibilidade de experimentar novas linguagens artísticas. “Teatro é a mais alta tecnologia”, disse, reforçando seu amor pela arte cênica.

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Com uma trajetória que inclui passagens marcantes pela TV — como na série Dois Irmãos, de Luiz Fernando Carvalho — e um olhar afiado para todas as etapas do processo criativo, Munir Kanaan mostra que não há limites para quem tem a arte como motor. “Meu projeto dos sonhos é sempre o próximo”, confessou.

Leia a entrevista completa abaixo:

Como é dirigir a peça Dois Papas e qual foi o maior desafio nessa montagem?
Dirigir Dois Papas tem sido uma experiência enriquecedora. O primeiro desafio foi encontrar a forma mais justa de contar essa história no palco, já que a principal referência do público é o filme. Para isso, busquei equilibrar o rigor intelectual e filosófico da peça com uma encenação plasticamente contemporânea, destacando o encontro humano por trás do embate teológico, em um registro de interpretação que chamamos de “realismo engajado”, sempre ancorado na circunstância de cada cena. A presença das freiras trouxe novos contrapontos à narrativa, e o jogo dos atores, aliado à construção dramatúrgica, foi essencial para manter o público totalmente envolvido. Só depois disso se prepara o lugar cênico onde tudo acontece – é aí que se descobre a chave da encenação. Trabalhar com grandes atores exigiu uma escuta ainda mais atenta. O teatro é vivo, e encontrar sua pulsação foi essencial para dar vida à montagem.

O que essa história nos ensina sobre os tempos atuais?
Dois Papas nos lembra da importância do diálogo em tempos de polarização. A peça mostra que, mesmo com visões opostas, é possível encontrar pontos de escuta e compreensão. Hoje, vivemos em um mundo onde as bolhas sociais e os algoritmos reforçam divisões, tornando o debate cada vez mais hostil. O encontro entre Bento XVI e Francisco nos ensina que discordar não significa romper, e que a verdadeira transformação vem do confronto de ideias aliado à humanidade. Em um tempo marcado por ruídos e intolerância, a peça convida o público a refletir sobre a necessidade urgente de conversar e ouvir o outro.

Como você enxerga a importância de adaptar para o teatro uma história que já teve grande repercussão no cinema e na TV?
Montar Dois Papas para o teatro é uma oportunidade de oferecer uma nova perspectiva sobre essa história. Vale lembrar que, antes do filme, o autor escreveu a peça e, antes dela, o livro. O teatro tem uma linguagem própria, mais imediata e sensorial, permitindo que cada apresentação seja única. Diferente do cinema, onde a montagem e a câmera direcionam o olhar, no palco tudo acontece ao vivo, e a presença dos atores cria uma conexão direta com a plateia. Teatro é a mais alta tecnologia. Além disso, a peça traz elementos inéditos em relação ao filme, como a presença das freiras, que ampliam os debates e os contrapontos da narrativa. A voz feminina, ausente no longa, ganha espaço no espetáculo.

Você começou sua carreira como ator e hoje também atua como diretor e produtor. Como foi essa transição?
Minha trajetória sempre foi movida pelo desejo de experimentar diferentes formas de contar histórias. Comecei como ator e, no ano passado, estive em cartaz com o meu primeiro solo. O interesse pela direção e produção surgiu naturalmente, a partir da necessidade de tirar projetos do papel e construir narrativas de acordo com minha visão. Dirigir Dois Papas tem sido um marco nessa transição, exercitando o meu olhar como encenador. Produzir também me deu mais autonomia, desde Hotel Mariana (2017), e uma visão mais ampla do teatro como um todo. No fim, todas essas funções se complementam, e cada nova experiência me ajuda a crescer artisticamente. Em breve, voltarei aos palcos como ator e também no cinema. Ah, e uma novidade: depois de trabalhar com o Beto Bruel, o iluminador de Dois Papas, estou considerando estudar iluminação (risos).

O que te atrai mais: estar no palco atuando ou nos bastidores dirigindo e produzindo?
Essa é uma pergunta interessante! Eu diria que, de certa forma, ambas as experiências me atraem, mas de maneiras diferentes. Estar no palco é uma vivência única, uma troca direta com o público, é o “instante-já”, e não tem igual. A coisa mais próxima seria pilotar uma moto em alta velocidade (fui motociclista por 10 anos). Por outro lado, estar nos bastidores, dirigindo e produzindo, me permite ter uma visão mais ampla do processo e da criação como um todo. Dirigir, especialmente, me proporciona a chance de moldar e guiar a narrativa, de cuidar de cada detalhe para que tudo funcione em harmonia. A produção, por sua vez, me dá a liberdade de tirar as ideias do papel e tornar projetos realidade. Portanto, o que me atrai mais depende do momento. Às vezes, a energia de estar no palco é o que mais me chama; outras vezes, o desejo de criar e moldar o espetáculo como um todo me guia para a direção e produção. No fim, todos esses papéis se complementam e me ajudam a crescer como artista.

Em 2017, você ganhou projeção nacional com a série Dois Irmãos. Como essa experiência impactou sua carreira?
A experiência com Dois Irmãos foi um marco importante na minha carreira. Foi uma oportunidade de trabalhar com o Luiz Fernando Carvalho e um elenco incrível, em uma produção de grande visibilidade. A série também me desafiou como ator, pois o material era profundamente complexo, e a construção do personagem exigia uma intensidade emocional grande, além de muita pesquisa e composição. Tive que emagrecer 7 kg, deixar a barba crescer bastante e aprender a falar libanês. Todo esse processo ativou em mim um senso de entrega e responsabilidade que adotei não apenas no meu trabalho, mas também na minha vida. Além disso, depois dessa experiência, senti uma vontade ainda maior de me arriscar em novos mares da arte de contar histórias, como a direção. Ser dirigido por Luiz Fernando me despertou o desejo de dirigir! E, claro, também de continuar atuando, mas de uma forma mais vertical e versátil.

Horror Lavanda está sendo adaptado para o cinema e você também estará atuando e co-produzindo. O que podemos esperar desse filme?
Sim, meu solo Horror Lavanda está sendo adaptado para o cinema, e estou bastante empolgado com esse projeto. Ano passado, me formei em produção executiva de cinema e esta é a minha primeira coprodução audiovisual. O filme vai manter a essência do monólogo, mas a adaptação para as telas permitirá trazer para a cena todo o universo e os outros personagens citados na peça. Atuar no papel principal e coproduzir o filme me permite estar envolvido em todos os aspectos da produção. A transição de um formato para o outro traz novas possibilidades, e acredito que o público poderá se conectar com a história de uma forma ainda mais intensa. O público pode esperar um filme urbano, com ambientações de repartições públicas e dilemas éticos e morais. Para quem já conhece o solo, será uma nova forma de experienciar a narrativa, e para os que ainda não conhecem, será uma oportunidade de descobrir esse projeto que tem tido uma trajetória tão especial.

Como você vê o cenário atual do teatro no Brasil e quais são as principais dificuldades que os artistas enfrentam?
O cenário atual do teatro no Brasil é desafiador, mas também muito rico e diverso. O teatro brasileiro tem uma história única e uma capacidade de se reinventar, mesmo diante de dificuldades estruturais e orçamentárias. Já o teatro paulistano, especificamente, está bastante aquecido, com salas lotadas e o público presente. O teatro, mais do que nunca, continuará sendo um dos melhores lugares para se estar. Quanto mais a tecnologia avança, mais o teatro se impõe como a maior de todas as tecnologias, uma verdadeira biotecnologia.

Na minha visão, as principais dificuldades que os artistas enfrentam estão relacionadas à escassez de recursos, à instabilidade das políticas culturais e ao acesso restrito ao público. O financiamento para as artes no Brasil sempre foi um grande desafio, e os cortes de investimentos nas áreas culturais intensificaram essa dificuldade. Além disso, a concentração de produções teatrais nas grandes capitais acaba deixando o interior do país com menos oportunidades para os artistas locais. Por outro lado, há uma crescente conscientização sobre a importância da arte e a busca por novos públicos. O teatro, por sua capacidade de reunir pessoas e provocar reflexões coletivas, continua a ser um espaço de resistência e de fortalecimento da identidade cultural do Brasil.

Você já trabalhou com diferentes linguagens, do teatro ao cinema e à TV. Como essas experiências se complementam na sua visão artística?
Sobretudo na posição de ator, todas essas linguagens partem da mesma essência: contar uma história e criar um vínculo com o público. Antes, costumava-se dizer que determinado ator ou atriz era “teatral” para a televisão ou o cinema, mas acho que isso já passou. Esse rótulo vinha de um certo registro de interpretação “teatral”, que, entre outras características, usava uma impostação de voz bastante típica. Salvo quando isso é uma proposta específica, muita coisa mudou – tanto pelo gosto do público (há um teatro que já ficou “antigo”) quanto pela tecnologia. Por exemplo, o microfone de lapela tem um resultado excelente e não se limita mais apenas aos musicais. Ainda arrisco dizer que as redes sociais, os smartphones, essa realidade de ter uma câmera no bolso e ser fotografado e filmado diariamente, mudaram a relação não só dos atores, mas de todas as pessoas com a câmera – inclusive em termos de linguagem e estética. Mas, sem dúvida, o teatro é o berço de tudo isso. Acredito nisso por conta da qualidade da dramaturgia.

Durante muitos anos, a televisão produziu excelentes histórias e personagens porque os dramaturgos e atores de teatro eram sua principal fonte criativa. Fomos nós, do teatro, que “inventamos” a televisão. Depois, a TV entrou em uma fase vazia, maniqueísta, óbvia, apelativa, com um melodrama pobre – e essa fase também formou muito artista vazio. Tenho certeza de que quem está lendo nem lembra da maioria deles. Hoje, voltamos a ter grandes histórias na televisão (aberta e streaming), e o cinema nacional, que sempre foi lindo, está aquecido e ganhando espaço. Então, como ator, consigo transitar entre essas diferentes plataformas porque sou da história, do personagem e, sobretudo, da busca pelo entendimento da circunstância dramática e do objetivo narrativo de cada cena. Isso, para mim, é o que realmente faz a diferença.

Se pudesse montar qualquer peça, sem limitações de elenco, orçamento ou local, qual seria o seu projeto dos sonhos?
Meu projeto dos sonhos é sempre o próximo. E já tenho um novo em andamento – ainda sem data, porque estamos em fase de captação, ou seja, à procura de patrocínio (alô, alô, patrocinadores e empresários!). É um texto com 14 pessoas no elenco – ainda não posso divulgar o nome, mas posso adiantar que será um baita espetáculo. Mas, se for para falar em sonho, eu adoraria encontrar um texto de um(a) autor(a) libanês e montá-lo aqui no Brasil. O Líbano produz coisas incríveis. Vocês já assistiram Cafarnaum? É um filme libanês, um dos melhores que já vi.

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