Os R$ 40 milhões investidos pelo Conselho Federal de Odontologia (CFO) na Solstic Capital Investimentos e Participações Ltda. desapareceram da conta da empresa logo após serem repassados. Extratos bancários da holding, obtidos pelo Metrópoles com exclusividade, mostram que o dinheiro foi transferido para fornecedores não identificados, sem que se soubesse o verdadeiro destino do montante milionário.
As transações levantam suspeitas de um suposto esquema de pirâmide financeira por trás das aplicações, e agora o CFO recorreu à Justiça na tentativa de reaver o patrimônio.
O golpe financeiro foi denunciado ao Ministério Público Federal (MPF), à Polícia Federal (PF) e ao Tribunal de Contas da União (TCU).
O CFO é a entidade responsável pela regulamentação e supervisão da prática da odontologia no Brasil. A autarquia coordena e supervisiona os conselhos regionais de odontologia (CROs) em todos os estados e no Distrito Federal. Com sede em Brasília, representa mais de 797 mil cirurgiões-dentistas, clínicas, empresas e outros profissionais em saúde bucal.
A receita da autarquia federal é basicamente constituída pelo pagamento das anuidades dos profissionais registrados na autarquia. Atualmente, o valor da cobrança varia entre R$ 54,79 e R$ 547,93, a depender da categoria.
As operações milionárias foram realizadas em 2021 na Solstic Capital, de propriedade de Flávio Batel. O empresário morreu em novembro do ano passado, e a empresa em questão foi encerrada sem que o valor investido fosse devolvido à autarquia federal.
Acordo milionário
Durante a pandemia de Covid-19, a antiga direção do conselho buscou parcerias que viabilizassem linhas de crédito especiais para profissionais da odontologia em dificuldade financeira. Em 2021, a então diretoria da entidade pública celebrou acordo com a Solstic Capital, que se apresentou como interlocutora do Banco BTG Pactual.
De acordo com dados que constam no portal da transparência da autarquia, dos R$ 101,6 milhões disponíveis em caixa para investir naquele ano, R$ 40 milhões foram aplicados na empresa.
As setes transferências bancárias realizadas pelo CFO para contas da Solstic Capital ocorreram entre julho e outubro de 2021, sob a premissa de que os valores seriam imediatamente repassados para uma conta da autarquia no banco.
Extratos bancários de um processo judicial do Banco Itaú, em desfavor da empresa Solstic Capital, demonstram que o valores milionários transferidos do CFO para a empresa diariamente eram esvaziados da conta bancária. A quantia sempre era repassada com a descrição de saída “pagamento de fornecedores”, o que pode sugerir se tratar de uma lavagem de dinheiro.
De acordo com denúncias de servidores e testemunhas do caso, os aportes financeiros na Solstic partiram de decisões da diretoria do CFO, então composta por Juliano do Vale (presidente), Evaristo Volpato (tesoureiro) e Cláudio Yukio Miyake (secretário-geral), sem a realização de processo administrativo prévio, deliberadamente contra a legislação que restringe esse tipo de investimento por parte de autarquias.
O documento aponta o atual presidente da entidade, Cláudio Yukio Miyake, secretário-geral da entidade na época das supostas irregularidades, como “operador financeiro da estrutura empresarial que recebeu os aportes, tendo sido possivelmente o principal articulador para que o CFO investisse recursos públicos na pirâmide financeira da Solstic”.
Vale ressaltar que, no Brasil, conselhos de classe estão restritos a investimentos em títulos públicos ou aplicações de baixo risco, conforme normas do Tribunal de Contas da União, o que impediria o CFO de ter repassado esse valor à empresa privada.
O empresário Flávio Batel teria se aproximado de Miyake por meio de Carlos Alberto Kubota, também empresário e sócio do presidente do CFO no Instituto Educacional União Cultural, que também possuía contrato com a autarquia. À época, a Solstic Capital — empresa de Batel — oferecia uma comissão de 5% para cada novo investidor captado. A promessa de lucro teria sido o principal incentivo para que Kubota apresentasse Miyake à empresa.
A empresa K INFRA, de Kubota, também já realizava aportes na Solstic desde março de 2021, conforme extratos de movimentação obtidos em processos judiciais públicos contra Flávio Batel.
Com o histórico profissional aparentemente promissor de Batel, nenhum dos diretores do CFO teria questionado a viabilidade do aporte financeiro. “Tratava-se, aos olhos deles, de um investimento supostamente seguro, de retorno rápido — e ainda por cima, com promessa de comissão pessoal envolvida”, menciona a denúncia.
Apesar de ser demonstrado no balancete do CFO do ano de 2022 como banco vinculado à aplicações financeiras, a Solstic Capital não era um fundo de investimento supervisionado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) — órgão responsável por regulamentar e fiscalizar o mercado de valores mobiliários no Brasil.
Empresa não habilitada
Relatórios de uma auditoria externa confirmaram que a Solstic Capital não era habilitada pelo Banco Central ou pela CVM para custódia de depósitos ou para oferecer remuneração, e que o contrato firmado com a empresa estava à margem das normas do mercado financeiro.
Apesar de diversas notificações extrajudiciais e tentativas de recuperação entre 2022 e 2023, apenas uma parte dos valores foi devolvida pela empresa, cerca de R$ 8,6 milhões, aponta a denúncia. Em 28 de fevereiro de 2023, a Solstic Capital reconheceu formalmente uma dívida de R$ 37.184.518,00 com o CFO em termo de responsabilidade.
A reportagem também teve acesso a uma nota interna, enviada aos conselheiros regionais de odontologia, na qual o CFO reconheceu as aplicações na Solstic e responsabilizou a gestão de 2021 pela operação, excluindo o Cláudio Miyake — atual presidente da autarquia que à época dos fatos era secretário-geral.
“A diretoria atual do CFO manifesta profunda indignação ao constatar que a entidade foi vítima de um elaborado golpe financeiro. Os extratos mensais emitidos pela própria Solstic, sem correspondência em instituições financeiras oficiais, constituem fortes indícios de estelionato financeiro”, alegou a autarquia em nota divulgada em 28 de abril deste ano.
Diante da gravidade da situação, a atual gestão do CFO disse que adotou medidas como auditorias internas, análise de documentos e extratos bancários, ação judicial no TRF1, notícia-crime ao MPF, pedido de bloqueio de bens, reforço dos controles financeiros e centralização das aplicações em instituições oficiais com garantia do governo.
Entre os pedidos da denúncia encaminhada ao MPF, à PF e ao TCU estão o afastamento imediato de Cláudio Miyake, de membros da diretoria e da Comissão de Tomada de Contas, e o rastreio de movimentações bancárias de empresas ligadas ao esquema, incluindo conta da Solstic no BTG Pactual.
Além do afastamento da diretoria do CFO, a denúncia também pede a instauração de inquérito para apuração dos crimes de peculato, estelionato, advocacia administrativa, tráfico de influência, formação de organização criminosa, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, prevaricação e desobediência a ordem judicial.
Fim da Solstic
Conforme constam nas informações cadastrais na Junta Comercial de São Paulo, a Solstic Capital iniciou as atividades em maio de 2020. Com um patrimônio de R$ 1,5 milhão, a empresa foi registrada tendo como principal atividade holdings de instituições não financeiras.
A função desse tipo de empresa é controlar participações societárias (ações ou quotas) de um conjunto de companhias cujas atividades predominantes não pertencem ao setor financeiro. O gerenciamento direto das empresas controladas pela holding não é obrigatório, podendo atuar apenas de forma estratégica ou patrimonial.
O empresário Flávio Batel aparece como sócio e administrador da Solstic Capital, com valor de participação na sociedade de R$ 1,4 milhão. Ao todo, a operação irregular da empresa movimentou cerca de R$ 100 milhões entre 2021 e 2022.
Em novembro de 2023, a empresa ficou inapta na Receita Federal devido à omissão de declarações obrigatórias. No site do JusBrasil, a Solstic Capital é mencionada em 47 processos judiciais
O dono da empresa, Flávio Batel, morreu, aos 50 anos, em novembro do ano passado. Sua condição cadastral na Receita Federal também confirma o falecimento. Na sequência, em 6 de dezembro de 2024, o então presidente, Juliano do Vale, e o então tesoureiro do conselho federal, Luiz Evaristo Volpato, renunciaram aos cargos.
“O ex-presidente Juliano do Vale e o ex-tesoureiro Luiz Evaristo Volpato, ambos citados, deveriam ter tomado posse no dia 8 de dezembro de 2024 para a continuidade do mandato, mas renunciaram misteriosamente ao cargo antes da posse. Atualmente, não compõem o Plenário do CFO. Tal saída repentina ocorreu muito próxima da data da morte de Flávio Batel, o que reforça a suspeita de que já havia pleno conhecimento da gravidade dos fatos nos bastidores da autarquia”, diz a documentação da denúncia.
Com as renúncias, o então secretário-geral Cláudio Miyake assumiu o comando da instituição.
O que diz o CFO
Procurado pela reportagem, o CFO não se manifestou sobre a denúncia até o fechamento desta matéria. O espaço segue aberto para futuras manifestações.