Marcos Galperín já disse que, se nascesse de novo, teria uma carreira esportiva. Ex-jogador de rúgbi, o fundador do Mercado Livre competiu na Austrália e Nova Zelândia, duas potências nessa modalidade, quando tinha 17 anos – numa paixão que parece nunca ter saído de seus sonhos. Ao optar pela trajetória profissional mais tradicional, no entanto, Galperín ajudou a criar a empresa mais valiosa da América Latina, avaliada em US$ 132 bilhões (cerca de R$ 750 bilhões). Nesta quarta-feira, 21, Galperín anunciou que deixará seu comando, após 26 anos como CEO, a partir de janeiro.
Em seu lugar, assumirá Ariel Szarfsztejn, atual presidente de Comércio do Mercado Livre. Na companhia desde 2017, Szarfsztejn já foi vice-presidente executivo de comércio eletrônico, vice-presidente e chefe operacional de logística, entre outros cargos. Ele tem 43 anos e trabalhará ao lado do cofundador do Mercado Livre nos próximos meses, no processo de transição.
No fim do período, Galperín, hoje com 53 anos, se tornará presidente executivo, pensando especificamente na estratégia futura da empresa, sobretudo com relação ao uso de inteligência artificial. “Sempre gostei de fazer as coisas um pouco distintas: pensar e agir diferente”, escreveu ele, em carta postada no X. “Sim, foi uma decisão muito difícil, a tomei porque estou convencido que esta transição é um passo fundamental para que o Meli siga sendo a empresa mais dinâmica e inovadora da América Latina e que se converta numa organização que transcenda a mim, a minha geração e a muitas mais. Sei que ser testemunha desse processo de consolidação e crescimento será meu maior orgulho.”
A decisão foi tomada porque, “apesar de ter a mesma energia e paixão do primeiro dia”, Galperín diz ter visto empresas de tecnologia enfrentarem dificuldades no processo de sucessão. “Por isso, preferi liderá-lo com tanto tempo, em nossos próprios termos, e fazê-lo com excelência para poder seguir liderando em uma indústria com mudanças e disrupções permanentes, hiper competitiva e que não dá, nem toma, respiros”, escreveu.
De uma garagem em Buenos Aires para o mundo
A seleção argentina de rúgbi poderia ter um bom zagueiro na década de 1990, mas pode-se dizer que tanto o país natal de Galperín quanto a América Latina têm se beneficiado de sua escolha de atividade. Segundo a revista The Economist, é difícil exagerar ao falar no impacto do Mercado Livre na região.
Em uma área de 650 milhões de habitantes e com grandes dificuldades logísticas, a empresa tem 100 milhões de compradores únicos e 1,2 milhão de vendedores ativos na plataforma, que fazem 63 transações por segundo. São 94 mil funcionários, em 18 países.
Além da compra e venda de produtos e serviços, o Mercado Livre abriga ainda a plataforma financeira Mercado Pago, a de publicidade Mercado Ads e tem um sistema logístico próprio, construído ao longo desses 25 anos, o Mercado Envios. No ano passado, o Mercado Livre faturou US$ 21 bilhões, com alta de 38% sobre o ano anterior. O lucro beirou os US$ 2 bilhões.
Com uma fortuna estimada em US$ 10 bilhões segundo a Forbes, Galperín nasceu em meio à tradicional riqueza argentina: um império familiar do couro. Entusiasmado com a internet, ele cursou Economia e Finanças em Wharton e fez MBA em Stanford. Foi lá que desenvolveu o projeto do Mercado Livre, que abriu na garagem de sua casa, no bairro de Saavedra, em Buenos Aires, como um comércio eletrônico de produtos usados.
Depois de lutar contra a lentidão do serviço e os frequentes aumentos de tarifas por parte das empresas postais, o Mercado Livre construiu uma rede de entregas própria e vasta, ostentando aviões e a maior frota de veículos eléctricos do continente.
Chegar lá, porém, foi uma trajetória bem latino-americana – quase um dramático tango argentino. “Para ser sincero, pensamos que chegaríamos aqui muito mais rápido”, disse à Economist, em entrevista no ano passado. Ele admite ter tido dúvidas a respeito do sucesso do Mercado Livre e destaca a sorte como um elemento da sua trajetória. “Por todos esses anos eu tive muita ansiedade… Você vê seu saldo no banco caindo todo mês. É uma sensação horrível.” O equilíbrio financeiro em 2005 não foi um momento de comemoração, mas de alívio.
Casado e pai de três filhos, ele tem opiniões bastante fortes sobre política, especialmente a respeito da Argentina, onde suas publicações nas redes sociais causam impacto regularmente. “A economia argentina é como um esportista que já foi o melhor do mundo”, disse. “Agora ele está obeso, viciado em drogas, tem câncer e Aids e é alcoólatra.”
Tal como muitos argentinos, Galperín foi radicalizado por anos de caos econômico. Em 2019, ele se autodenominou democrata ao estilo de Bill Clinton. Hoje ele apoia o presidente da Argentina, Javier Milei, um autodenominado “anarcocapitalista”. Quando Milei foi eleito, Galperín postou uma foto de pombas se libertando das correntes com uma palavra: “Livre”. Judeu secular, ele também é veemente em seu apoio a Israel na guerra em Gaza.
Nesta quarta-feira, 21, postou: “O mundo começa a entender algo que finalmente parece que aprendemos na Argentina. Os déficits fiscais eternos em algum momento se pagam. Seja com inflação, defaults, recessão ou um combo de todos.”
Procurado pela reportagem, Galperín não se pronunciou. Em relação à troca no comando de sua empresa, ele disse nesta quarta-feira, em comunicado, que “Ariel Szarfsztejn, que está na companhia desde 2017, tem a capacidade, a liderança e a cultura necessárias para guiar o Mercado Livre nos próximos anoso. Junto da equipe que me acompanhou nessa jornada, ele tem tudo para manter o forte ritmo de crescimento da empresa”.
Na trajetória esportiva, fez o que um bilionário apaixonado por rúgbi faria: arrematou seu próprio time. É dono do Miami Sharks desde 2023, no qual investiu US$ 6,5 milhões. Já suas ombreiras e protetores faciais deram lugar a tacos de golfe e pipas de kitesurf, em seu período de lazer. É no Brasil, onde o Mercado Livre tem uma de suas principais operações, um dos lugares em que ele costuma praticar o esporte.