Para Maria e Liz (por Tânia Fusco) 

Não é fácil. Nunca foi fácil. Mulheres são alvo desde que o mundo é mundo. Na Idade Média, fomos queimadas em fogueiras. Crime? Rebelar-se contra a insignificância que nos era imposta. E assim pensar, observar, aprender e ensinar. Coisas de bruxa.

Como bruxas, fomos torradas.

Agora, querem sentenciar meninas a até 20 anos de prisão pelo crime de ousar abortar feto de estupro. As meninas de 9 a 14 anos são as mais atingidas pelo projeto (PL 1904) que pretende limitar o DIREITO aofeminici aborto apenas a 22 semanas de gestação. Por desinformação, dificuldade de deslocamento, chantagens por motivos religiosos, são essas meninas, vítimas de estupro, as que mais tardiamente buscam pelo direito ao aborto, garantido na lei.

Minhas queridas, pequenas que ainda são, nem sabem o que é aborto, que existe aborto. E que ele dói no corpo e na alma. Ninguém faz aborto como método anticoncepcional.

Os que são contra, preferem o cinismo de saber que ele existe e é feito majoritariamente de maneira clandestina. E que mata dezenas de mulheres.

Minhas queridas, nada é fácil quando envolve o corpo das mulheres. O mundo ainda é dos homens. E eles – felizmente com exceções – não pegam leve com a gente.

Não e é fácil. Nunca foi fácil. Somos sempre suspeitas de manipulações e infernais fascínios. Sem cerimônia, contam que formos nós as responsáveis pela desdita de perder o Paraíso.

Sabiam não? Pois é assim contado. No Paraíso, uma imensidão só de maravilhas, viviam livres Eva, a primeira mulher, criada da costela de Adão, o primeiro homem que, justamente para ser homem, mereceu ser inteirinho produzido pelas mãos santas e perfeitas de Deus.

Tão perfeito saiu que deu para, sem prejuízo, tirar uma sobra de costela e dela fazer Eva, a mulher. Nós mulheres fomos feitas de sobra, entende? Tipo humano de segunda classe.

Contam para as crianças que foi Eva quem, no Paraíso, deu a Adão o tal do único fruto proibido – a maçã.  Adão fartou-se.

Por conta disso, cá estamos nós a vagar por esse mundo, se virando pra escapar da morte e aqui viver da melhor maneira e o maior tempo possível.

Nós mulheres, minhas queridas, já chegamos ao mundo condenadas pelo crime da maçã.

Não riam. Por séculos, a história vem sendo contada assim.

E do Paraíso pra frente, para nós, tem sido um infinito de enfrentar e vencer o cerco.

Aqui nas terras brasileiras, só em 1827 meninas foram liberadas para frequentar colégios, e conseguir educação maior do que as dos cursos primários. Em 1879, tomamos o direito ao acesso às Faculdades. Hoje somos maioria no ensino superior.

Em 1932, conquistamos o direito ao voto. Somos maioria dos eleitores. Em 1962, por lei, as mulheres casadas não precisaram mais da autorização do marido para trabalhar. A partir de então, passamos também a ter direito à herança e a chance de pedir a guarda dos filhos, em casos de separação. Ali, quase sempre negada.

Em 1979, conseguimos o Direito à prática do futebol. Antes, proibido por decreto. Em 2006, foi aprovada lei a Lei Maria da Penha de combate a violência contra as mulheres.

Em 2015, com milhares de assassinatos de mulheres em terras brasileiras, foi sancionada a Lei do Feminicídio, que aumenta a pena quando há o assassinato envolvendo questão de gênero. Em 2018, também a importunação sexual, o assédio às mulheres passou a ser crime.

Minhas queridas, nada foi fácil. Nada será fácil. Nada veio de graça. Nada virá.

A historinha da Eva é mãe da misoginia, do ódio às mulheres. Ele ainda marca nossa existência, sustenta a desigualdade entre homens e mulheres. E a violência deles contra nós.

Mas vocês, pequenas, precisam saber que no meio dessa guerra nunca declarada, nos ainda vestimos minissaias ou sias longas, tiramos os sutiãs, vestimos e desvestimos o que queremos.  Rebeladas, fazemos abortos quando a vida assim exige, trocamos de maridos e de maridas. Independentes, produzimos e ganhamos dinheiro, tocamos a vida de nariz empinado e de cabeça erguida. Enquanto nossos opressores nem os ternos conseguiram abolir. Seguem paramentados de paletó, gravata e calças compridas. Mesmo num calor de 50 graus.

Quem é mais livre, queridas meninas?

Das vovós rebeldes vocês herdarão coragem, boas memórias e grandes histórias. E principalmente o anel de bamba pra seguir na luta.

 

Tânia Fusco é jornalista 

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