Entre a nudez de Cyrus e a de Bianca Censori (Por Pedro Adão e Silva)

Há um ano, Miley Cyrus arrasou nos Grammys. A sua presença com poucas vestes a interpretar Flowers foi o assunto da cerimónia. A canção ajudou – um tema orelhudo, cheio de balanço, síntese das virtudes pop –, mas o significado daquela atuação era mais vasto. Para alguém que cresceu em público e evoluiu de estrela infanto-juvenil da Disney, como Hannah Montana, para artista com propósito, não é inocente encher o palco sozinha e, num canto celebratório, entoar “I can buy myself owers”.

Um século depois, quero crer que Virginia Woolf teria gostado de assistir a esta revisitação da sua Mrs. Dalloway. Só que, agora, o fluxo quotidiano da consciência de uma mulher que decidira que “ela própria iria comprar flores” já não era vivido como angústia, mas, antes, como celebração. Miley cantava desempoeirada e a seminudez radiosa que exibia reforçava as possibilidades de liberdade que hoje se abrem no feminino. Foi esse reconhecimento que vislumbrei na audiência, onde, numa sororidade forjada por passos de dança, se vêem Taylor Swift, Kylie Minogue ou Oprah Winfrey de sorriso aberto, a moverem-se ao ritmo da música.

De igual modo, neste ano, o instante significativo dos Grammys como fixação da cultura popular poderia ter sido o reconhecimento do talento luminoso de Beyoncé, a abraçar uma relação sincrética entre a country e a música negra. Só que tudo foi ofuscado pela performance de Kanye West e da sua mulher, Bianca Censori. A ninguém escapou o relato ou as imagens da passadeira vermelha, quando o casal para diante dos fotógrafos e perante um Kanye impávido, vestido de um negro militar, Bianca deixa cair um longo casaco de peles para se revelar numa nudez integral.

É difícil pensar num contraste maior do que o existente entre a quase-nudez emancipatória de Cyrus no ano passado e a performance doentia da mulher de Kanye (um tipo cheio de talento a viver um processo imparável de degradação mental). Escrevo propositadamente “mulher de Kanye”, pois há uma história sombria de homens vestidos que observam corpos femininos nus, fixada com brutalidade no início de Salò ou os 120 dias de Sodoma de Pasolini. Não sei se o filme inspirou a performance de Kanye e Bianca, do mesmo modo que não estou certo de que Miley Cyrus estivesse a referenciar Virginia Woolf, mas é impossível olhar para as imagens dos Grammys e deixar de nelas reconhecer um exercício de poder que diminui o lugar da mulher, que aqui se apresenta capturada e submissa.

O filósofo Giorgio Agamben, num ensaio que faz parte de a Nudez (Relógio d’Água), especula precisamente sobre momentos em que a “nudez não é um estado, mas um acontecimento” e alerta-nos para a forma como aquela é marcada por uma herança teológica pesada. De acordo com a narrativa do Gênesis, só depois do pecado Adão e Eva se apercebem de que estão ambos nus. Este instante fugidio é, ao mesmo tempo, negativo – a privação da veste de graça – e um presságio da veste de glória, possível de encontrar apenas no Paraíso.

É por isso que a longa e subversiva história da nudez corresponde, em importante medida, a um percurso emancipatório, ancorado na nostalgia de uma nudez sem vergonha presente no mito da criação. No entanto, a libertação brusca do corpo encenada por Bianca Censori não passa de um exercício de “corporeidade nua”. Um instante incômodo, marcado pela ausência de graça e incapaz de promover qualquer tipo de subversão artística. Quem observou o corpo daquela mulher a ser olhado pelo marido testemunhou, apenas, um enorme embaraço.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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