O vocabulário da política brasileira tem consagrado o conceito de polarização para traduzir o sentimento do eleitorado em relação ao momento que o país atravessa. O termo se tornou uma recorrência na expressão popular, a partir de 2018, quando o ex-capitão Jair Bolsonaro ganhou o pleito, no segundo turno, por 55,13% contra 44,87% do petista Fernando Haddad. A polarização foi o conceito usado por uma parcela do eleitorado para explicar a vitória do candidato da direita contra o candidato de esquerda. E, também, para explicar a vitória de Lula em 2022.
A polarização política, é oportuno lembrar, ganhou espaço no cenário eleitoral ao longo do ciclo da redemocratização dos anos 90, quando o PT ainda se apresentava como o legítimo intérprete do ideário socialista, enfrentando o PSDB, que tentava fincar as estacas da social-democracia. As diferenças entre os dois se apresentavam no modo de implementar seus programas, pois os escopos se aproximavam.
Enquanto os partidos socialistas defendem a igualdade social, a justiça, a redução da desigualdade e a intervenção do Estado na economia para garantir o bem-estar social, por meio de mudanças radicais, os partidos social-democratas defendem o Estado do Bem-Estar Social, focando em reformas gradualistas, sob a égide do Estado Democrático de Direito.
Era esse o ideário que abria espaço para a polarização. Hoje, a disputa entre tucanos e petistas não tem mais sentido. O tucanato se apequenou, ninho, diminuiu de tamanho e, para sobreviver, funde-se, agora, com um partido amorfo, o Pode (Podemos), da família Abreu (Renata Abreu), para formar uma Federação, essa nova figura criada com o objetivo de permitir às legendas atuarem de forma unificada em todo o país. A nova Federação promete atuar na área de centro-direita.
Como se vê, os tucanos mudam para outro lado do arco ideológico, estreitando o espaço de centro-esquerda e engordando o centro.
Já o PT, que se apresentava como o único partido a desfraldar a bandeira socialista, também corre para o centro, premido pelas circunstâncias e forçado por um aglomerado composto por uma batelada de siglas sem doutrina (o Centrão). Urge reconhecer, porém, que o petismo ainda atrai uma legião de simpatizantes, principalmente os bolsões que recebem benefícios, contingentes da baixa classe média, grupos da Academia e do mundo das artes e pequenos proprietários, entre outros.
O fato é que o partido amaciou sua imagem, adoçou sua narrativa extremista, limpou arestas, e contém vozes mais radicais, como os integrantes da Articulação de Esquerda, que ainda defendem um “projeto de direção socialista para realizar um processo de transformação radical do Brasil”.
A imagem de partido ideológico do PR dá lugar a de um partido que joga o “jogo das conveniências”. Um partido que busca apoio de entes amorfos, sem ideologia, sem programas e sem marca.
O PSB do prefeito de Recife, João Campos, e do vice-presidente Geraldo Alckmin, por sua vez, já não habita a seara socialista, embora o S da sigla (S de socialista), tenha perdido sentido.
Voltemos, então, a analisar a polarização. Como ela pode existir sob uma moldura que mostra um PT centrista, um PSDB quase morrendo, o PDT do ministro da Previdência, Carlos Lupi, sendo destroçado pela crise do INSS, o PSB de João Campos sem programas, o PSD de Gilberto Kassab crescendo no espaço de centro-direita, e o PL de Valdemar da Costa Neto e de Bolsonaro, tendo como único objetivo derrotar Lula em 2026. Defende o PL um ideário, uma linha programática que lhe desse uma identidade? Ora, se ganhou em 2018 a disputa contra o PT, não foi por conta de uma marca ideológica e, sim, porque o eleitorado viu em Bolsonaro um perfil novo, alguém que se contrapunha à mesmice.
A ciência política ensina: a polarização costuma ocorrer em sistemas bipartidários, como os dos Estados Unidos, onde dois partidos, o republicano e o democrata, se revezam no assento presidencial da Casa Branca.
Portanto, a polarização no Brasil, nos termos definidos pela política, não existe ou é insignificante. Temos 29 siglas registradas no TSE e não há, entre elas, disputas ideológicas, com exceção de um outro partido, de índole extremada, como o PSOL ou o PSTU.
Se a disputa ideológica é de pouca intensidade, já na esfera social ela ganha força, ancorada em divergências entre duas bandas da sociedade, uma que se proclama liberal (defesa de princípios que enfatizam a liberdade individual, a igualdade perante a lei, a democracia, o livre mercado e a propriedade privada); e outra que defende valores conservadores (defesa da manutenção das instituições sociais tradicionais, como a família, a comunidade local e a religião, além dos usos, costumes e tradições).
Qual o tamanho dessas bandas? As pesquisas de opinião calculam que ambas não passam de 30% do eleitorado. Sobram 70%.
Pergunta que fica no ar: é possível se afirmar que temos forte polarização no país, como costumam dizer bolsonaristas e petistas?
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor.