Xande de Pilares lembra versos que ganhou de presente de Almir Guineto

Tempos atrás, Xande de Pilares passeava na praia ao lado dos sambistas Almir Guineto (1946-2017) e Arlindo Cruz quando recebeu de Almir a seguinte frase de presente: “O amor é abstrato/ Quer falar, mas não tem voz”. Ele nem precisou perguntar qual a função daquela frase. O autor de “Mordomia”, “Caxambu” e “Conselho”, entre outros clássicos do samba, disparou para o amigo: “Agora, tu vai lá e se vira”.

Desafios como esse fazem parte da vida do sambista nascido 54 anos atrás com o nome de Alexandre Lins da Silva. Rebento das comunidades cariocas, em 1994 ele criou o grupo Revelação. Duas décadas depois, partiu para uma consagrada carreira solo.
O mais recente desafio de Xande foi transpor para o seu universo o rico repertório de Caetano Veloso.

“Xande Canta Caetano” apresenta releituras ímpares de dez músicas do cantor e compositor baiano, entre elas “Alegria, Alegria”, “Muito Romântico” e “Gente” (há também “Irene”, que será posteriormente lançada como single). O disco será levado para a estrada assim que o Carnaval terminar.

Em entrevista para a Billboard Brasil, Xande fala não apenas do álbum, mas também do preconceito contra o samba –que inclui uma esnobada feia de um artista sertanejo–, da família e dos desafios de ser pai pela terceira vez, agora de uma menina. Ah, sim. Ele conseguiu, muitos anos depois, completar os versos de Almir Guineto. Não falamos que ele adora desafios?

Você lançou um disco dedicado a Caetano Veloso, um dos maiores compositores da música brasileira. E por aqui existe essa separação injusta entre as siglas “samba” e a chamada “MPB”. Esse trabalho ajuda a acabar com o preconceito?

Há tempos batalho contra essa diminuição da importância do samba. Ele é referência mundial: quando você vai para o exterior e fala que é do Brasil, a primeira atitude das pessoas é tocar pandeiro, mostrar samba no pé ou fazer de conta que está chutando uma bola. Mas um dos objetivos do álbum foi justamente lutar contra a discriminação que se faz do sambista. Os resultados têm sido bastante positivos. Gente que nunca escutou meu trabalho tem prestado atenção nas coisas que faço porque ouviu minha homenagem em vida ao Caetano Veloso.

Seu avô é constantemente citado nas suas entrevistas. Qual é a importância dele para a tua vida?

Meu avô era um cara ignorante para caramba. Curtia tomar a cachacinha dele, tocar uma sanfoninha. Mas era de uma sabedoria… Dizia: “Não se toma remédio sem ler a bula, não se escuta um disco sem estudar a ficha técnica”.

Outra coisa que ele me ensinou: eu morava no Tanque, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro. Ali, o banheiro era fora de casa, e a gente tinha de encher a caixa d’água para tomar banho… Como esse local oferecia visão para o outro lado da rua, ele dizia: “Tá vendo a rua? Quando você passar por ali, certamente vai encontrar um sujeito mal encarado. Tem duas opções: passar por cima ou voltar para casa”.

O que ele quis dizer? Na sabedoria popular dele, eu certamente enfrentaria dificuldades na vida. Tinha a opção de encará-la de frente ou desistir. E sei o que é preconceito. Eu tinha feito um curso de digitador e saí para procurar emprego. Na minha vez de fazer a ficha, a recrutadora parou a fila.

Você acha que desempenha uma função de aglutinador? Seu disco ao vivo tem uma participação importante do Prateado. Ele trabalhou muito com as bandas de São Paulo nos anos 1990, e elas eram hostilizadas pelos sambistas tradicionais. Para você, tudo é samba?

Prateado é daqui do Morro do Barro Vermelho, em São Cristóvão, e conheço ele desde os tempos em que tocava banjo no bloco Cacique de Ramos. É o meu professor. No nosso país tem uma maneira de conduzir o samba, cada um tem a sua própria cultura, né? Então, o carioca tem uma maneira, o paulista tem outra, o mineiro também. Tem samba até em Campina Grande, que é uma cidade ligada ao forró. O mais importante é que se toque o samba, né? Porque o samba é a bandeira que eu carrego.

Voltando ao “Xande Canta Caetano”… Uma das canções que me chamou a atenção foi “Muito Romântico”, que a minha geração conheceu com o Roberto Carlos. Com você foi Caetano ou Roberto?

Conheci com o Roberto. Aquele disco da capa vermelha, onde ele parece estar se apresentando ao vivo [“Roberto Carlos”, 1977]. É o mesmo que tem “Amigo”, né? Eu achava que essa música era de Roberto e Erasmo Carlos, mas fui descobrir, então, que era do Caetano Veloso. Ele, aliás, fazia parte do meu cotidiano por causa das novelas. “Sem Lenço, Sem Documento” [1977], exibida pela Globo, iniciava ao som de “Alegria, Alegria”. Fiquei encantado pela maneira de o Caetano interpretar aquela letra. E não é que tempos depois o Pretinho da Serrinha começa a me levar para a casa do Caetano?

Quando você começa a frequentar a casa do Caetano, você também começa a passar por um processo até mais de politização, né? Eu lembro aquela canção contra o ex-presidente Michel Temer e que “Tá Escrito” virou uma canção de protesto. Como se dá essa politização na tua vida?

Nunca fui um cara politizado, porque vim de um ambiente que os políticos nunca fizeram muita questão de frequentar. Mas não consigo me livrar muito, não. Eu acompanho os assuntos, né? Principalmente depois que eu comecei a frequentar a casa de Paula Lavigne. Comecei a entender, a me aprofundar, observar o que cada partido quer… Mas, por opção, prefiro continuar com a música.

As suas composições têm um quê de autoajuda, de superação, de valores morais… Por que decidiu seguir essa linha?

Porque algumas canções me incentivaram muito. Eu morava num lugar pobre, de onde a gente achava que não ia conseguir sair. E “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores”, de Geraldo Vandré, e “É Preciso Saber Viver”, de Roberto e Erasmo Carlos, me ajudaram a seguir em frente.

Essa coisa da motivação: aconteceu uma vez de eu estar com um probleminha na escola. Fiquei de recuperação e tinha muito medo de apanhar da minha mãe. Entrei numa loja de discos. Estava tocando “O que É, o que É”, do Gonzaguinha. Fiquei fascinado com a mensagem e saí pedindo dinheiro na rua para comprar o disco –que ouvi até furar. Passei de ano e pedi a Deus a chance de criar uma canção que causasse nas pessoas o mesmo impacto que “O que É, o que É” causou em mim.

E conseguiu?

“Tá Escrito” é um presente de Deus. Ele, para mim, está em primeiro lugar. É o poder supremo. Sou um cara muito religioso.

Você canta “Lua de São Jorge” e mistura com “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben Jor. Qual é a sua relação com as religiões afro-brasileiras?

Sou macumbeiro, sou filho de Oxossi e de Exu. Gosto de orar antes de subir ao palco e agradeço a Deus pelo dia que passei. E quando não dá tempo de rezar, eu fico bolado, acho que vai dar ruim.

Em “Xande Canta Caetano”, creio que “Amor”, eternizada por Gal Gosta, e “Diamante Verdadeiro”, cantada pela Maria Bethânia, são os dois maiores desafios do disco. E para você?

“Amor” tem uns altos e baixos na melodia do Caetano Veloso e de como ela se encaixa em versos tão lindos… Falei: “Caramba, tenho que arrumar uma maneira para não descaracterizar a música. Mas eu também não posso deixar a minha característica fora dela. Nesse ponto, Caetano e Pretinho me ajudaram muito a superar esse desafio.

Eu amo música, gosto de criar imagens das letras que eu canto. Em “Trilhos Urbanos”, por exemplo, fiquei imaginando as ruas de Santo Amaro da Purificação, que serviram de inspiração para o Caetano. Imaginei o imperador fazendo xixi, a cana doce Santo Amaro [momentos citados na letra]. Caetano até pediu para acrescentar algo que fizesse referência à minha infância na letra, mas nem quis mudar.

Você certa vez disse que cinco minutos de música prendem mais a atenção do que meia hora de palestra. Por quê?

Porque ela mexe com as tuas emoções. Às vezes, numa palestra, você acaba puxando assunto com quem está do teu lado e se dispersa. Não tenho nada contra palestras, mas acho a música mais poderosa. Canções como as que eu falei do Gonzaguinha e do Roberto, “Do Jeito que a Vida Quer”, do Benito de Paula, e “Volta por Cima”, do Paulo Vanzolini, me ajudam a repensar a vida.

 

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