No momento em que a fé dos cristãos se transformou em cristianismo — primeiro, quando ganhou o estatuto de religião oficial do Império Romano, depois com quatro concílios que combateram as heresias e definiram o essencial do credo cristão, nos séculos IV e V —, muito se ganhou e muito se perdeu. O que se ganhou foi a Igreja que chegou até aos nossos dias, com o seu imenso poder, a sua dimensão planetária e a sua capacidade disciplinadora. O que se perdeu, com frequência excessiva, foi a fidelidade à mensagem de Jesus e à letra dos Evangelhos, que são textos revolucionários sobre tesouros, campos, lírios e aves, mas também sobre espadas, espinhos, sangue e cruz, que nenhum catecismo consegue realmente domesticar.
Há, por isso, uma tensão histórica entre aquilo que são as parábolas de Jesus em estado natural e aquilo que são os dogmas disciplinadores da Igreja. As parábolas abrem o texto a múltiplas interpretações. Os dogmas tentam fechá-lo. Percebe-se porquê: não há instituições fortes sem regras claras; nem pode haver cristianismo sem ordem e uma doutrina vigiada. Infelizmente, com o correr do tempo, qualquer religião demasiado ordenada corre o risco de se petrificar, transformando-se numa mera manifestação cultural, estéril e ritualizada. O Evangelho de Mateus tem um excelente nome para isso: “Sepulcros caiados.” São “formosos por fora, mas por dentro cheios de ossos de mortos e toda a espécie de imundície” (Mt 23, 27). As pessoas vão à missa por hábito social, batizam-se e casam-se em cerimônias religiosas, mas sem estarem realmente comprometidas com a dimensão evangélica da Igreja. Esta dimensão nunca desapareceu ao longo de dois mil anos, mas por vezes tornou-se muito difícil encontrá-la, sobretudo entre as paredes do Vaticano.
Existe, por isso, um cristianismo cultural, que serve perfeitamente para algumas pessoas se agarrarem a ele enquanto reflexo do mundo que conhecem desde a infância e no qual desejam continuar a viver. E existe um cristianismo essencial, visceral, que se agarra às entranhas do Evangelho e procura levá-lo a sério. Jorge Bergoglio foi um cristão visceral. Escolheu em 2013 ficar com o nome de Francisco de Assis — uma daquelas figuras que ao longo da História obrigaram a Igreja a dar guinadas evangélicas no seu percurso — e o melhor que se pode dizer é que viveu 12 anos à altura do nome que elegeu.
Não se trata aqui de opor católicos conservadores a católicos progressistas e proclamar que Francisco era o inimigo n.º1 dos primeiros e o grande Papa dos segundos. Isso seria caricaturar o seu pontificado. Além de a dicotomia conservador/progressista só servir hoje para distrair dos maiores desafios da Igreja, convém notar que foi o conservador Bento XVI que teve a coragem de abdicar e que, ao humanizar o papado, abriu caminho à ascensão do progressista Francisco, um argentino leve, desbocado e cheio de humor.
Francisco foi a maior revolução na Igreja desde o Concílio Vaticano II, sem mudar a doutrina. O casamento homossexual não passou a ser permitido, nem as mulheres passaram a ser ordenadas. Mas Francisco mudou o olhar e o tom sobre as mulheres e sobre a comunidade LGBT graças à sua saudável obsessão com o “todos, todos, todos”. Ele não fez nada de mais, no sentido em que é impossível ler os Evangelhos e sair de lá a achar que a Igreja deve ser uma colecção de crentes engomadinhos. Mas ninguém foi tão inclusivo antes dele. Parecendo que não é nada, no que à fé cristã diz respeito é quase tudo.
(Transcrito do PÚBLICO)